MARIONETES

 Wlamir Silva, professor e historiador


Em fins de 2019 uma foto em que uma bandeira Mapuche está encarapitada no alto de um monumento entulhado de gente, acima das bandeiras chilenas foi saudada por aqui. O significado era o da inversão de bandeiras em vários sentidos. A identidades negra, indígena, feminista e LGBT acima da nacional como resposta à direita conservadora chilena, à herança pinochetista. Dois anos depois a população chilena derrotava de forma acachapante a proposta de constituição feita pela nova constituinte com representações das novas identidades, já sob um governo de esquerda que se debatia com problemas mais sublunares. Nesta semana, a eleição de um conselho para (re)elaborar a nova constituição chilena se findou com uma vitória da direita, segundo a grande mídia, da “ultradireita”.


Foto atribuída à fotógrafa chilena Susana Hidalgo

O que significa exatamente que uma imprensa conservadora se anime a usar com tanta liberalidade adjetivações como “extrema” e “ultra” para grupos políticos de direita? E não falamos só do Chile, aliás, tais adjetivos têm servido para designar coisas diversas e momentos diversos. A adjetivação maior, já com pretensões de substantivo substancialíssimo, é a “onda de direita”. Denominações que reúnem muitíssima gente, dos que defendem quase tudo do ponto de vista do viés liberal que, em geral, subjaz a estes movimentos conservadores. O que explica isso é o foco sobre uma pauta de costumes, em formato identitário e com pretensões “revolucionárias”, que aqui quer dizer impacto sobre a sociedade como um todo e um antagonismo agressivo: negros versus brancos, indígenas versus brancos, mulheres versus homens, LGBTs versus versus heteros-cis etc.

O identitarismo sidera a grande mídia porque não envolve a crítica do status quo, o enfrentamento da realidade como totalidade, divide a sociedade em nichos e destrói as perspectivas universais, de transformação radical ou reforma substancial. Mas isso não nasce na mídia, ou no “mundo da arte” e nas universidades – embora ali encontre muita simpatia identitária... –, mesmo nas ONGs “caça-níqueis”. Nasce e é cevado no mundo maleável do grande capital corporativo, que financia e adota tais pautas. Por fim, soma-se às hostes identitárias uma esquerda melancólica que busca ali a saída, ou um atalho, para a perda de Norte utópico, entre o constrangimento de aderir ao status quo e a falta charme de cuidar de questões prosaicas. O simbolismo negro-indígena-femino-LGBT-decolonial é a revolução “em cápsulas” que resgata o glamour.


Foto da posse de Lula, chamada por alguns de "a cara do Brasil"

Não é de estranhar que este bálsamo feito sob medida para camuflar conservadorismos corporativos e melancolias de esquerda se torne o mote para a confluência com reacionarismos mais sutis, em especial por meio do Estado. Aí o identitarismo fornece uma justificativa chique, civilizatória mesmo, para a consolidação da ordem flexível do Capital. Para o qual contribuem jornalistas algo obtusos e ávidos por carreira e dinheiro; acadêmicos ansiosos também por carreira, reconhecimento e... carguinhos; e políticos sequiosos de poder. Daí o ridículo das imagens dos Mapuche no topo, das cômicas fotos com a “cara do Brasil” e os cursos de “educar com o cu”... Alguns dizem: a direita agradece! Quase acertam... A direita que se ri é a maleável, flexível, que puxa os cordões das marionetes identitárias que vagueiam por universidades, estúdios e palácios...

Evento da Universidade Federal da Bahia

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