TUDO FAREI PARA O POVO, PORÉM NADA FAREI PELO POVO: A PROPÓSITO, APENAS A PROPÓSITO, DA MAIORIDADE PENAL
Wlamir Silva
Professor e historiador
Nosso título é uma frase atribuída a D. Pedro I no
processo de Independência do Brasil. O pensamento, no entanto era corrente à
época. Sobre o Príncipe brasileiro pesavam o persistente Absolutismo e o
Liberalismo do início do século XIX, cheio de críticas aos excessos da
Revolução Francesa e de desconfianças do “povo”. Ideias presentes no despotismo
do primeiro Imperador e em muitas cabeças de então.
A ideia é, mutatis
mutandis, atual. E tanto no trato do passado como no presente alimenta um
mal-estar quanto à existência, ou importância, de um povo ou nação. Alguns
fatos nos chamam a atenção para tal angústia em nossos dias. Em especial na
“disputa” pelo “povo” e, ao mesmo tempo, de sua valoração. É o caso da atual
polêmica sobre a diminuição da maioridade penal. Pelo fato de 80 a 90% da população
ser favorável à diminuição da idade de 18 para 16 anos.
Incomoda que o povo – pelas porcentagens,
evidentemente irredutível a setores de “classe média” ou “ricos” – tenha
posição tão “conservadora” ou “reacionária”. Tal incômodo não nasceu agora. Um
referendo acerca da proibição do comércio de armas de fogo e munição realizado
em 2005, com quase dois terços da população rejeitando a lei, foi
significativo. A rejeição a “Lei do desarmamento” chocou os que consideravam a
ideia obviamente progressista e sepultou o interesse em consultar tal “povo”,
tão inconfiável, para decidir qualquer outra coisa...
A decepção de 2005 causou um mal explicado horror à
“reacionária” opinião popular. Em especial porque a proposta do referendo se
apoiava em pesquisas de opinião que faziam, aparentemente, do projeto de Lei
uma “barbada”... Pouco tempo de discussão pública evidenciou a vacuidade da Lei
diante da realidade social e, como observaram os mais argutos, a rejeição da
“bondade” mostrou uma catarse cívica[1] e a
pouca receptividade da população às “bem intencionadas” engenharias sociais que
contornam as contradições reais.
Já em 2012 uma pesquisa apontava que 68% da
população apoiava a diminuição da maioridade penal[2]. A
permanência e o crescimento desta tendência põem em xeque a falácia de que a
opinião popular varia com comoções de casos específicos de violência,
mostrando-se uma certa regularidade. As
atuais porcentagens variando entre 80% e 92% apenas confirmam tal tendência. Se
com pesquisas de opinião favoráveis houve a “derrota desarmamentista” de 2005,
que dirá o atual quadro para os “defensores dos direitos de crianças e
adolescentes”... Consultar essa gente, nem pensar...
Na consideração do que é e pode fazer o “povo” há
uma estranha confluência. À direita, os mais conservadores sempre viram os
setores populares com incapazes de protagonismo político, vendo o “povo” como,
no máximo, um depositário de uma moral tradicional, isso quando não contaminado
por ideias subversivas ou comprados pelo Estado, o que só o define como
incapaz. À esquerda, “revolucionários” e reformistas têm uma visão dúbia do
“povo”, ora ele é depositário de uma ontológica “moral revolucionária”, ora ele
é vítima da mídia e de inconfessáveis humores reacionários. Para ambos o “povo”
é um herói, quando concorda com eles, ou um estorvo, quando deles discorda. De
uma forma ou de outra, um ente passivo e ingênuo.
Ainda há a poderosa tendência pós-moderna, de
matriz foucaultiana, que desdenha do que neste “povo” apresenta um mínimo de
inserção econômica e social, ou seja, quem quer que seja “incluído”. Esta "nova esquerda" busca os marginalizados – periferias, minorias “étnicas”(ou “raciais”), de
gênero etc. – como ontologicamente revolucionários, em detrimento mesmo de
evidentes e amplos contingentes de trabalhadores. A “esquerda” governamental coopta
por meio de políticas localizadas e de discursos identitários estes
marginalizados. Para ambos a massa que ousa afrontar o cabalístico marco dos 18
anos é “fascista” ou iludida pela mídia, novamente e igualmente um ente passivo e ingênuo.
É generalizada pois a compreensão de que o “povo” é
incapaz de pensar por si mesmo. O que se pretende provar sob um fuzilamento de
estatísticas e supostas relações de causa e efeito. Citamos aqui apenas uma
delas: baixar a menoridade não adianta, como prova o fato de que desde 1992 o
número de detentos aumentou em 317% e nos últimos 8 anos as taxas de homicídio subiram
24%. Fato que ocorreu com a idade penal de 18 anos, não é mesmo? Aliás, também
sob a vigência do Estatuto da Criança e do Adolescente, criado em 1990... O que
isso quer dizer? Apenas que manipulações de estatísticas e relações falsas de
causa e efeito se prestam a qualquer coisa...
A experiência popular, e de significativos setores
das classes trabalhadoras, inclusas as “periferias” e outras “minorias”, por
óbvio contraste estatístico, mostra-se incomodamente diferente. Vê
cotidianamente um novo e diverso perfil do adolescente, quer exigir deles, a
começar por seus filhos, responsabilidades. Para ela os paladinos “defensores
dos direitos das crianças e adolescentes” não passam de tolos que só veem
direitos dos que delinquem, e não da imensa maioria deles que sofre
constrangimentos e violências.
Os itens das pesquisas sobre a maioridade penal não
discriminam as faixas de renda, mas, se cruzarmos com o item da enquete de
2005, que perguntava, simploriamente, é certo, se as causas da criminalidade
está na ou na “maldade das pessoas”, vemos que os maiores índices da opção “maldade
das pessoas, 60%, estava entre os de renda familiar de até cinco salários
mínimos. Enquanto os da “falta de oportunidades iguais” se concentravam na
faixa de mais de dez salários mínimos, com 56%. O que sugere que a “intolerância”
com criminosos, e também os menores, talvez seja ainda maior entre os
subalternos.
Parte disso provém do atraso político destes setores populares, sem dúvida. Parte se origina de sua experiência social. Eles não são sensíveis ao argumento de que “a redução da maioridade penal não reduziu a criminalidade” seja lá onde for. E porque deveriam? São dados arrumados para provar isso e, mesmo que reais, o que autoriza que o mesmo se daria em condições materiais e culturais diferentes? São mais sensatos que certos acadêmicos, tão cuidadosos em não fazer generalizações nos seus ofícios, mas que se animam a fazê-lo ao travestir de científicas suas opiniões sobre o assunto.
Também não os sensibilizará saber que tantos ou
quantos adolescentes são assassinados. Primeiro porque sabem disso, segundo
porque sabem que, ao contrário do sugerido pelos esgrimem tais números, boa
parte disso não se deve a um suposto policiais versus jovens, mas das relações violentas entre criminosos, parte
deles “jovens”, e trabalhadores. Sabem sim da violência policial, mas não são
tolos de considerá-la o único, ou mesmo o mais importante, motivo. Conhecem bem
a realidade no campo da experiência, estão no front.
Eles intuem que a violência se origina das
desigualdades sociais, mas não podem percebê-la em suas relações mais
profundas. Em nada os ajuda nisso os maniqueísmos politicamente corretos, ou as
epifanias “de esquerda” que projetam para a iminente “revolução” e para o paraíso
socialista a solução mágica de seus males. São também mais sensatos que tal “esquerda”
que joga para as calendas a questão da violência que os atinge diuturnamente[3]. Por vezes exageram, e mesmo caem no canto da sereia de propugnadores do
“bandido bom é bandido morto” e outras manifestações da barbárie.
Desconsiderá-los e à sua experiência e estigmatiza-los como mera ingenuidade
influenciável apenas os deixam sem alternativas a não ser o tosco discurso
reacionário da direita policialesca.
A redução do “povo” e da classe trabalhadora a
ontologias conservadoras ou “revolucionárias”, desconsiderando a experiência
social em favor de elites iluminadas, que creem interpretar seus anseios, sejam
elas tecnocráticas, políticas ou “humanitárias” é o fato político que ressalta
desta polêmica em grande parte vazia. À esquerda, ou superamos vanguardismos e
epifanias do que é justo e iniciamos um longo trabalho de discussão sobre
questões centrais da ordem social vigente, ou as reais causas da violência e da
criminalidade se eternizarão.
Ao invés de criarmos versões idealizadas de povo,
nação ou classe, e negá-los quando os seres humanos reais não se encaixarem em
nossas utopias, é mister considerar a experiência social em curso. Fazer para o
povo é bom para os que entendem que a ordem social vigente é inexorável e só
nos resta fazer uns acertos. E também para os que creem uma mudança profunda
virá da “ira santa” da multidão periférica, a qual confundem com pequenos
grupos localizados, aos quais mais que convencer prestam serviços. Fazer pelo
povo exige considerar suas ideias e sentimentos como agentes históricos. Não os ter como
uma verdade ontológica, mas saber que sem encorpar um processo de convencimento
dialético centrado no desvelamento da contradições sociais apenas reforçamos a ordem social vigente.
[1]
José Murilo de Carvalho. A tardia catarse cívica. Folha de São Paulo, 30 de
outubro de 2005. http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs3010200504.htm
[2]
http://www1.folha.uol.com.br/poder/2012/12/1206138-tendencia-conservadora-e-forte-no-pais-diz-datafolha.shtml.
Tratamos disso em aqui mesmo, no artigo A RENOVAÇÃO ELEITORAL, A GELEIA GERAL
BRASILEIRA E AS
ESQUERDAS. http://saojoaodelpueblo-pcb.blogspot.com.br/2014/10/a-renovacao-eleitoral-geleia-geral.html
[3]
Nas últimas eleições no Rio de Janeiro todos os candidatos com chances defenderam
as Unidades Pacificadoras, que, apesar de suas limitações e da violência policial,
têm simpatias da maioria da população.
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