Wlamir Silva, professor e historiador
O deputado Carlos Bolsonaro comparou professores doutrinadores” a traficantes
de drogas.[1]
Muita gente se indignou e com boa dose de razão, mas com exagero, como
observaremos ao final deste texto. Muitos dos indignados apõem o fato de serem
professores. Também o somos, há 37 anos, 7 anos no ensino básico (nas 8 séries
da época, mais pré-vestibular e uma escola técnica) e 30 no ensino superior. Se
não desprezássemos a expressão, diríamos possuir “lugar de fala”.
O Sr. Bolsonaro fala em “doutrinação
marxista”. E sobre este argumento é preciso lembrar duas coisas. A primeira é a
de que nos meus anos de formação em História e por muito tempo na vida
acadêmica ser marxista era um peso de chumbo, com epítetos desrespeitosos e
ameaças de ostracismo, o que não se devia a uma “(extrema-)direita” acadêmica,
mas a uma onda pós-moderna, irracionalista e despolitizante. A segunda é a de
que conheci e vi professores que – se não chamo de “doutrinadores”, sem
rejeição maior que ao “lugar de fala” – apresentavam graves problemas éticos e
intelectuais, que seriam, sim, passíveis de críticas e ações. Panfletários, é
como os chamo, com o benefício de jungir epistemologia e ética, aí
inseparáveis.
Ultimamente, observa-se um
fenômeno grotesco. Se o Marxismo antes era atacado em suas premissas epistemológicas
e políticas, agora ele sofre a corrosão de cupins intelectuais que o exaurem de
sua capacidade crítica e o transformam numa atração de circo. Reduzindo o
patrimônio crítico do pensamento materialista-dialético a binarismos infantis
de “ricos versus pobres”, a
racialismos, feminismos e a uma miríade de identitarismo chorosos. Numa imagem:
a academia resta coalhada de “marxistas genéricos”, simbólicos ou “culturais”. Não
foi a “(extrema-)direita” que o fez. Antes o seu ascenso se deve ao sequestro
da crítica marxista – incluso o duro contencioso da crise do socialismo – por um
condomínio pós-moderno e sentimentalista. Ao fundo, acima e além, o grande
capital corporativo vai “pondo fichas” de forma pragmática “à direita e à
esquerda”, mas o “cordão umbilical” com o pós-modernismo cosmopolita-identitário
é mais sólido...
Uma dimensão essencial da degenerescência
pós-moderna, a forma mais acabada de seu irracionalismo, é a preeminência da
linguagem. Afastada a ambição de apreender o mundo e transformá-lo, resta a
linguagem. A linguagem sem “referente do real”, mero “efeito do real”, gerou um
“giro linguístico”, um deslocamento lógico em direção à linguagem. A teoria
social, a teoria da História, foram substituídas pela análise linguística. Tal
giro se reflete também no campo da política, com uma hipervalorização do
discurso no seio do real, um hipersimbolismo. Isso, somado ao supracitado binarismo
simplório, levou à excessiva valorização do papel da linguagem: a linguagem faz
tudo, cria realidades! Assim, o debate político é um jogo linguístico e – o real
existe, mas é incognoscível – e o controle da linguagem é essencial. A dimensão
do controle, por sua vez, emerge do fantasioso enfrentamento “cósmico” entre “o
bem e o mal”, contra uma conspiratória “(extrema-)direita”. Na forma do
Politicamente Correto, ou seja, do ideal de linguagem asséptica, fortemente
assentada no capital corporativo e na medida para a inércia “democrática” das “instituições
intermediárias”, por aqui dos tribunais superiores.
Assim, a indignação com as falas
primárias de Carlos Bolsonaro exagera por cinco razões: 1) assumir o exagero da
importância da linguagem; 2) substituir questões complexas por um binarismo
fantasioso; 3) obnubilar as questões reais com o binômio
linguístico-maniqueísta; e 4) se deixar seduzir pelo controle que se lhe
oferece pelo status quo corporativo; 5)
enganar-se pela coerção da censura e cassação que se incrusta no aparato
estatal (e permanecerá). Em síntese, um encanto pela trama autoritária.
A contraprova do exagero é dada pelo próprio Estado, quando o ministro da justiça Flávio Dino encarrega a Polícia Federal de analisar discurso do referido deputado. Não de investigar quaisquer ações ou agir em função de uma flagrante transgressão. A análise da linguagem se tornar função policial, para fins de censura e cassação política, é uma manifestação quase caricatural do que aqui observamos.[2] Um ato falho autoritário de laivos tragicômicos.
[1] https://g1.globo.com/politica/blog/andreia-sadi/post/2023/07/10/eduardo-bolsonaro-compara-professor-a-traficante-de-drogas-em-evento-pro-armas-no-brasilia.ghtml
[2] Dino
determina que PF analise discursos de evento com Eduardo Bolsonaro... - Veja
mais em
https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2023/07/10/dino-determina-que-pf-analise-discursos-de-evento-com-eduardo-bolsonaro.htm?cmpid=copiaecola
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