A CAÇA ELITISTA E AUTORITÁRIA AOS “IMBECIS”

 Wlamir Silva é professor e historiador

Já faz uns sete anos que Umberto Eco (1932-2016) vociferou contra as redes sociais e os imbecis. Exatamente, dizendo que “as redes sociais deram direito de fala a uma legião de imbecis”.[1] Há três dias, o Sr. Alexandre Moraes, ministro do Supremo Tribunal Federal repetiu a sentença, sem citar o italiano, repetiu a sentença: “As plataformas e a internet deram voz aos imbecis”.[2] Quando era ministro indicado pelo dito golpista Michel Temer, Moraes era chamado de plagiário pela “esquerda lulista”, então não surpreende que não cite. E definitivamente não importa.



Mussolini, Eco e Moraes

Sempre deploramos a diatribe do Sr. Eco. Antes dos corcoveios miméticos do Sr. Moraes, menos de um ano depois do italiano, outro careca tratava do tema, também “babando”: “sempre teremos 999 pessoas odiando para cada pessoa que pensa, osso às vezes me dá ódio”.[3] Curiosamente, o segundo careca, que atende por nome de Karnal, cairia em desgraça por aparecer em fotos com o “golpista” Sérgio Moro, fazendo o caminho inverso ao de Moraes. Novamente não importa, mas sim o fato de que os reptos contra os “imbecis” são incensados pela “esquerda lulista” nos dois momentos. O ad hominem é um “bônus”, o que possui significado é o amor pelo elitismo, pela ideia de que apenas alguns merecem ter o direito à fala.

Mapeados e localizados os imbecis, cabe aos ungidos pela ciência, cultura e civilização a higiene das ideias, opiniões e... falas. Higiene sociopolítica que vai desde a ambulatorial “checagem de fatos”, até os antibióticos; a quimioradioterapia das exclusões das redes e “desmonetização”; até a cirurgia, a extirpação do mal pela prisão. É claro que a sentença importa, são dramas pessoais – ainda que, como disse o humorista Dave Chapelle, "tirar o meio de vida de alguém é a mesma coisa que matar" –, mas o principal, o vício de origem, é o mesmo: gente ungida com o poder de negar a fala, a expressão, aos que ela considera imbecis.

Mas a higiene intelectual esconde um segredo. E o nosso segundo careca, o Sr. Karnal, o expôs, meio que inadvertidamente – é... nossos campeões da razão não são lá essas coisas... –, pois, SEMPRE haverá um mísero milésimo de pensantes nas sociedades. Um careca predecessor dos citados, seu “Duce”, consciente ou inconscientemente, Benito Mussolini, já invectivava, na Doutrina do Fascismo, “o século da Democracia, o século do número, o século das maiorias e das quantidades”, que seria o século XIX, a “forma de democracia que equaliza uma nação com uma maioria, diminuindo-a ao nível do maior número”.[4] Modernamente, Mussolini “atualizava”, ainda que em bases coletivistas e identitárias, o horror ao “despotismo do número” do liberal doutrinário François Guizot.

O “número” que já se delineava no século das maiorias se adensou no século XX. Socialistas e comunistas viram nele a matéria-prima da transformação radical da sociedade, em que pese desvios autoritários, vanguardismos e afins. Um intelectual do estofo de Antonio Gramsci (1891-1937), que morreu jovem praticamente na cela fascista, elaborou um diagnóstico e um prognóstico de enfrentamento das novas condições que criaram, inclusive, o Fascismo. O pensador italiano dissecou a complexa sociedade contemporânea, as relações entre as condições materiais e o pensamento, entre o individual e o coletivo, das disputas pelo senso comum. Para Gramsci, “todos os homens são filósofos”, e achar o contrário era preconceito.[5] Não há estigma de imbecis quando se pensa assim. É ironicamente revelador que o “filósofo da direita” Olavo de Carvalho, tenha descrito Gramsci como o “profeta da imbecilidade, o guia de imbecis”.[6] Gramsci não tinha horror ao homem comum, ao senso comum e não via ou imaginava atalhos ao convencimento, ao consenso.


Antonio Gramsci

O segredo de polichinelo é este: o horror ao povo, o medo do povo. Fenômeno que combina num turbilhão o apego ao status quo e a confissão de impotência do convencimento. Dizemos num turbilhão porque aí se confundem os agentes, muitas vezes aparentes radicais são, principalmente, manipuladores de hegemonias confortavelmente assentadas... E o velho elitismo se (con)funde com o recauchutado identitarismo, a preservação das estruturas oligopólicas de mídia e da ordem garantida pelas “conversas de bastidores em salas enfumaçadas”[7], como sonham e defendem cientistas políticos que fazem muito, e intelectualmente pastichado, sucesso entre os nossos “guardiães da democracia”. E nunca é demais lembrar que nossas salas enfumaçadas são particularmente fétidas...

Umberto Eco proferiu uma conferência, que virou um livrinho, sobre um “Fascismo eterno”[8], cujo conteúdo se transformou em uma cartilha nas redes sociais. Inteiramente desprovida de substância histórica, a cartilha ignora o povo, as massas. O Fascismo deixa de ser um movimento de massas – o verdadeiro enigma de sua existência –, para ser um apanhado de maus bofes, e apenas um deles basta caracterizar coisas muitíssimo distintas do Fascismo. Subjaz ali, novamente, o nosso segredo de polichinelo, o Fascismo é um horror eterno – portanto, anterior à sua realidade histórica, a Mussolini e Hitler – de inomináveis massas ignorantes, eternamente ignorantes. Eco de Mussolini, ou Guizot, com o desprezo pelo homem comum que os une. Aliás, como se o Fascismo e o Nazismo não tivessem seus intelectuais, desde o arqueológico Nietzsche – e seu horror à carneirada –; Giovanni Gentile, provável (co)autor do aqui citado Doutrina do Fascismo; e do festejado Martin Heidegger, aquele para quem a filosofia, ou o pensamento, é privilégio de poucos...

Para nós, ressalta-se o Sr. Alexandre Moraes, prova viva do elo entre o elitismo de Umberto Eco e Leandro Karnal, que dá materialidade ao horror aos imbecis com sua inquisição às redes sociais. Prisões, exclusões e “desmonetizações” contra os difusores de “fake news” e os que atentam “contra a democracia”, e o fazem por palavras, manifestações. Inquéritos, prisões e exclusões ilegais, originadas em inquérito com vício de origem e com base num conceito inexistente e num paradoxo: pois, “fake news” inexiste em Lei e é garantida constitucionalmente a livre expressão.

Paira o horror às massas, ao homem comum, à livre manifestação. Os imbecis não devem se manifestar, a sua manifestação é um risco para a democracia. Como diz o Sr. Moraes, nas redes sociais “qualquer um se diz especialista”. E para os exterminadores dos imbecis é de uma facilidade cristalina quem são os capacitados para distinguir a verdade das “fake news”, os capazes dos incapazes, os defensores da democracia dos falantes contra ela. Hoje, por aqui, são os togados, amanhã poderão ser os parlamentares, depois de amanhã um chefe do Executivo. Tornada institucional a caça aos imbecis, o inferno é o limite.

 

 



[1] Redes sociais deram voz a legião de imbecis, diz Umberto Eco. Portal Terra, 11 de junho de 2015. https://www.terra.com.br/noticias/educacao/redes-sociais-deram-voz-a-legiao-de-imbecis-diz-umberto-eco,6fc187c948a383255d784b70cab16129m6t0RCRD.html>.

[2] 'Internet deu voz aos imbecis', diz Alexandre de Moraes em evento na Bahia. Rádio Itatiaia, 14 de maio.

< https://www.itatiaia.com.br/noticia/internet-deu-voz-aos-imbecis-diz-alexandre-de-moraes-em-evento-na-bahia>.
Ver também a análise de Bruna Frascolla. Gutenberg deu voz a uma legião de imbecis. Gazeta do Povo, 16 de maio de 2022. <https://www.gazetadopovo.com.br/vozes/bruna-frascolla/gutenberg-deu-voz-a-uma-legiao-de-imbecis/amp/>.

[3] “Sempre Teremos 999 Pessoas Odiando Para Cada Pessoa Que Pensa. Isso Às Vezes Me Dá Ódio”. Portal Geledés, 4 de maio de 2016. https://www.geledes.org.br/sempre-teremos-999-pessoas-odiando-para-cada-pessoa-que-pensa-isso-as-vezes-me-da-odio/>.

[4] Benito Mussolini. A doutrina do Fascismo. Lebooks.com.br, pp. 5 e 25.

[5] O filósofo Roland Corbisier utilizou-se da citação de Gramsci em contraponto a Heidegger – em epígrafes –, que, citando Nietzsche, afirmava que a filosofia era um “saber [...] raro. Só os grandes pensadores o possuem. Roland Corbisier. Introdução à filosofia – Tomo I. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983, p. 11.

[6] Lincoln Secco. “Gramscismo” o fantasma que apavora a ultra-direita. Blog da Boitempo, 16 de maio de 2019. <https://outraspalavras.net/outrasmidias/gramscismo-o-fantasma-que-apavora-a-ultra-direita/>. Há uma leitura simplória que converge “esquerda” e “direita” de um Gramsci excessivamente instrumental, quase um marqueteiro ou propugnador de um método de manipulação de massas.

[7] Steven Levitsky & Daniel Ziblatt. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar, 2018,

http://dagobah.com.br/wp-content/uploads/2019/02/Como-as-Democracias-Morrem-Steven-Levitsky.pdf

[8] Umberto Eco. O Fascismo Eterno. Rio de Janeiro: Editora Record, 2018.


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