O PROBLEMA É O NORMAL

 Wlamir Silva é professor e historiador

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Os mais novos temas da nossa diligente oposição memética são o, “vestível”, 500 MIL MORTES NÃO É NORMAL e um videozinho comparando o estilo de vários ex-presidentes diante de tragédias. O primeiro na chave “fúnebre” do “genocídio”, o segundo no já bem conhecido apego à tal “liturgia do cargo”, agravado com o tom fúnebre pandêmico.



Meio milhão de mortes não é normal, a pandemia não é normal... E já dissemos inúmeras vezes que parte de nossos problemas de enfrentamento dela se deve ao governo federal. Nos repetimos: “troca de ministros, falta de coordenação, falta de agilidade na contratação de vacinas, mensagens truncadas no que diz respeito às orientações sanitárias etc.”. Mas sabemos que não basta, é preciso ver o atual governante como um demônio, um assassino genocida. Isso não fazemos, por honestidade, concepção de luta política e percepção da realidade.

Mas o mote de que vivemos politicamente algo anormal traz em si um apelo, uma esperança de volta à normalidade, e o videozinho de declarações sobre tragédias – bem diversas, diga-se – aponta para o respeitável perfil dos guardiães da normalidade. E aí a porca torce o rabo... Durante a pandemia chamaram a nossa atenção algumas notícias. E vão abaixo os links, não há “fake news”, nem mistérios, são públicas e publicadas, basta não estar obnubilado por certas urgências políticas e a crença teórico-político-moral de que vale tudo – exagerar, esconder e mentir mesmo – para atingir o objetivo. O objetivo da normalidade, bem entendido.

Durante a pandemia descobrimos que um mero auxílio de R$ 600 bastou para diminuir a pobreza extrema à sua menor taxa em 40 anos! Quatro décadas de normalidade... E ainda que este auxílio franciscano chegou a impactar na compra de eletrodomésticos! O que a longa normalidade não permitia a muitos... Descobrimos ainda que 46 milhões de brasileiros pobres invisíveis aos olhos do governo, sem registros até para receber auxílio...[1] Normalidade informal ou informalidade normal? E soubemos também que as escolas no país são muito importantes para... a alimentação básica! Normal...



Se o afastamento social é, e era, importante para conter a pandemia, precisamos conversar sobre os reflexos do citado no parágrafo anterior... Quem sente um alívio da miséria por um auxílio não vai ficar em casa, vai batalhar mais uns trocados para respirar mais um pouquinho. Quem está no “meio da tabela” da pobreza – mesmo que tolos e malandros os chamem de “classe média” – não pode perder o pouquinho que tem vivendo de auxílio. E as condições de vida – moradia, acesso à saúde, acesso à comunicação e lazer eletrônicos, meios de viajar com segurança etc. – da imensa maioria da população não permite, ou permitiu o isolamento desejado, material e psicologicamente. A isto some-se as condições de saneamento e urbanismo das metrópoles, onde se concentra a população brasileira. Qual o impacto disso em nossos números de infecção e mortes?

Nada desta normalidade foi criado em dois anos, nada dela se deve à política da pandemia. E, vamos lá para a nossa tão significativa “liturgia do cargo”: nada se resolveu pelo estilo respeitoso dos discursos presidenciais, ou de quaisquer dos nossos líderes políticos legislativos, ou de nossos empoados juízes superiores... Sarney era amabilíssimo, uma estrela em pêsames; FHC um lorde de tweed e cotoveleiras de couro verbais; Lula um sertanejo sentimental, e malandro o bastante... Nenhum deles foi acusado de planejar quedas de avião e tragédias cotidianas, é honesto dizer... Mas tal elegância não resolveu nada do nosso, agora, festejado normal.

É que o normal é fruto de décadas de desindustrialização, atraso tecnológico, inadequação tributária, inércia política – falo do nosso sistema representativo, mas isso é questão invisível em nossa política –, clientelismo, fisiologismo, engessamento do Estado etc. E o populacho, o brasileiro comum, o brasileiro médio – que a maior parte da oposição memética enxovalha periodicamente, sabe, ou pelo menos intui tudo isto. Sabe também que a conversa “civilizada” convive muito bem com a normalidade que os infelicita... O povo, e faz muito bem, caga solenemente para frases algo toscas, e sabe muito bem que muito luto, no mais das vezes, esconde rega-bofes elegantes.

Bolsonaro vai reverter o nosso normal? Não, podemos afiançar. Mas não o criou ou mesmo teve tempo para piorá-lo tanto como nos querem fazer crer nossos oposicionistas meméticos do #EleNão, do “genocídio” e demonizações várias. E, infelizmente, lideranças políticas que ao menos esboçaram uma crítica a este normal naturalizado – como Ciro Gomes e Marina Silva, assim como um considerável espectro capaz desta crítica – acham-se obrigados à oposição de viés infantilizado. Fato que carreia forças para a candidatura de Lula, que não foi especialmente responsável pelo nosso normal, mas que se destacou por duas “importantes” contribuições: 1) a ideia de que governos à esquerda são inócuos ao normal; 2) a mistificação deste normal.[2]

Dissemos que abordamos assim a conjuntura política, e repelimos a memética, por concepção de luta política. Expliquemos: não há atalhos para melhores dias no país, muito menos para um melhor horizonte. Dito isto, não há esperança em mistificar. Não há caminho se não o do convencimento de amplas massas trabalhadoras. E aí, como dizia Gramsci: a verdade é sempre revolucionária.

 

 



[1] Ver Faixa de pobreza é a menos em 40 anos no Brasil. Agência Brasil. 29.7.2020. https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2020-07/taxa-de-extrema-pobreza-e-menor-em-40-anos-no-brasil; Auxílio turbinou venda de alimentos e eletrodomésticos. Terra. 10.9.2020. https://www.terra.com.br/noticias/coronavirus/auxilio-turbinou-venda-de-alimentos-e-eletrodomesticos,2597680d33962ef3df37f275031a79a6k5e1vstg.html; Auxílio emergencial de R$ 600 revela 46 milhões de brasileiros invisíveis aos olhos do governo. Globo.com. 26.4.2020. https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2020/04/26/auxilio-emergencial-de-r-600-revela-42-milhoes-de-brasileiros-invisiveis-aos-olhos-do-governo.ghtml; Pandemia do coronavírus pode levar fome a quem depende da merenda escolar. DW. 24.3.2020. https://www.dw.com/pt-br/pandemia-do-coronav%C3%ADrus-pode-levar-fome-a-quem-depende-da-merenda-escolar/a-52900622

[2] A recente popularidade do Liberalismo na sociedade brasileira, em especial junto aos subalternos, com impacto político-eleitoral recente, se deve, em boa parte, ao fato de que o viés mistificador foi, por mais de uma década, “de esquerda”. Ver Percepção e valores políticos nas periferias de São Paulo. São Paulo: Fundação Perseu, 2017. https://fpabramo.org.br/wp-content/uploads/2017/03/Pesquisa-Periferia-FPA-040420172.pdf







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