Wlamir Silva é professor e historiador

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BOLSONARO VENCEU O BIG BROTHER BRASIL?

O Big Brother Brasil (BBB) é uma bobagem. O bom de dizer isso é que se pode obter tal opinião num amplo espectro “político-ideológico”. É como os “ratinhos na caixinha”[1] das experiências com cobaias. O mais duro que se pode dizer dele é sua artificialidade, o oximóron da artificialidade do “reality”.

Às vésperas do final do BBB 2021, um artigo se refere a uma das participantes do “reality” como “parecendo” uma “tropa bolsonarista”.[2] Aí estamos no mundo real, mais do que alguns imaginam, mais do que gostaríamos. E não porque denuncia a moça, não porque expõe um suposto comportamento político e social, mas por mostrar um aporte ideológico.

Tal “análise” se torna mais interessante devido à vitória da “bolsonarista” Julliete, com o número expressivo de 90,1% dos 633 milhões de votos do público.[3] O que numa avaliação superficial pode ser considerado como uma vitória popular de um discurso “bolsonarista”, de “extrema-direita”. O que se teria dado, supostamente, com a paulatina eliminação de discursos “à esquerda”.


E por que Julliete teria feito uso de “estratégias similares [às da] da extrema direita”? O que caracterizaria tais estratégias? E por que elas foram vitoriosas numa amostra de voto popular que, ainda que enviesada, é de magnitude inegável? E que se considere que tal viés reúne gente “menos politizada”, o que, arriscamos, é muito socialmente representativo.

SEM NOÇÃO OU HEGEMÔNICA?

Curiosamente, a “análise” que ocupou espaço em veículo de mídia importante – UOL/Folha de São Paulo – é contraditória. Tal estratégia é “considerada pela audiência como ‘sem noção’ e [...] invasiva [...] como assédio”, ao mesmo tempo que de “presença hegemônica na opinião pública”.[4] É algo curioso, mas não surpreendente, como veremos.




Segundo os “analistas”, frases de Julliete “pareciam ter vindo diretamente do gabinete do ódio”, expressão cunhada para designar uma influência “radical” à direita e propagadora de “fake news” no governo Bolsonaro.[5] Trata-se de um rol de frases tidas como homofóbicas, transfóbicas, racistas e violentas:

“Você acha legal esse estereótipo? Eu não quero que você seja visto como bicha escandalosa” “Racismo não tem cor!”; “Eu gosto de pessoas sensíveis, eu gosto de pessoas divertidas, eu gosto de pessoas negras também”; “cala a boca travesti sem noção”; “eu quase que bati em você, sem querer, mas com muita vontade de acertar”.

O mal-estar é o de como a personagem preconceituosa e violenta, “assumidamente autoritária[...]” se tornou “a nova namoradinha do Brasil”. E a explicação prévia é a de que isto se deve a que “no Brasil isso é uma vantagem. [Já que] [c]onforme [o] Datafolha, o índice de apoio a posições autoritárias é de 8.10, numa escala de 0 a 10”.

Não é, definitivamente, uma questão de avaliar cada frase de Julliete. Poder-se-ia fazê-lo. Afinal, alertar do risco do estereótipo é discriminar? E só pessoas “de cor” serem passíveis de racismo é verdade inquestionável e baliza para designar alguém como de “extrema-direita”? E isso vindo de uma pessoa que sofria por ser nordestina? E dizer que gosta de “pessoas negras também” é racista, isso num ambiente em que um dos “jogadores” tinha proposto de saída uma aliança de negros contra brancos? E o “cala a boca travesti sem noção”, dirigido a uma mulher, no calor de uma discussão, é um manifesto?

E os inaceitáveis ataques de Julliete ao estereótipo sagrado se deveriam a “mitadas”, como a de apontar que quem “acolheu Lucas” – o “jogador” negro que havia proposto a unidade de negros contra brancos – “[f]oi a loirinha do olho azul que as pessoas querem enquadrar como privilegiada [...], foi a branquinha que tem cara de dondoca”. E do deslocamento do preconceito para outro grupo, dizendo que “[q]uando as vulnerabilidades de Lucas apareceram aqui, as pessoas mais machucadas aqui [referindo-se as [sic] participantes negros da casa] pum nele!!”.

Não é de estranhar que se atribua à Julliete “a luta pelo direito de pegar Covid-19”, pela frase “você quer se colocar em risco, é um direito seu”. Uma “pérola” que teria lhe valido o apelido de “Jairliette”, nas redes.  Ou que se atribua a ela ter “chutado o pé fraturado de alguém, [...] pedido desculpas rindo e anunciado [que] “o manco está bem e me perdoou”, e numa curiosa inversão, pedir se informasse se Bolsonaro teria feito algo parecido com tal “monstruosidade”.




E, para fazer o “espelho” do “bolsonarismo”, não podia faltar a referência às “fake news”. E, como a homenagear o tópico, falseia-se até o, já controverso, conceito. Visto que a atribuição é infundada. Difícil aqui evitar a citação in totum: “Na primeira festa, Juliette perguntou a Acrebiano se ele achava que ela falava alto. Ele respondeu: ‘Pode ser sincero? Você fala, sim’. Ela então declarou: ‘Sim, mas eu vou parar, acho falta de educação quem fala alto’. Logo em seguida, ela falou com Caio: ‘Seu amigo falou que eu falo alto e sou mal-educada’”. Como se uma fala desmentisse a outra... A conclusão “teórica” é também impagável: “Tendo muito a ensinar a Steve Bannon, cada desinformação da casa é acompanhada por uma rede de intensa capilaridade na internet que dissemina, distorce e cria fatos que beneficiam a narrativa da liderança de direita”.

A referência a Steve Bannon extrapola o julgamento da personagem a uma rede (social) de intrigas. Na qual versões distorcidas de falas e ações de outros “jogadores” seriam uma espécie de teoria da conspiração altamente sofisticada. Um “incendiar a internet com mentiras”, um “efeito manada”. Ou “para os sobreviventes de 2018 [houve mortos de 2018?], a ‘mamadeiradepirocação’”. Teoria da conspiração que inclui o apoio das “elites econômicas”, o que se depreende da frase “Eu frequento lugares da alta sociedade em São Paulo, Rio, Brasília.” De fato, uma “mamadeiradepirocação” bem alimentada, cevada com “informações” de equipes insinuadas como financiadas e interesse de marcas, do que resta a velha dúvida da propaganda de biscoito: Julliete “vende” por seu protagonismo ou tem protagonismo por ser “vendida”? Isso porque “[a] nova namoradinha do Brasil é tudo o que as empresas querem: a cara de dondoca e a empatia sempre performada em um belo sorriso”.

PARADIGMAS

Uma aproximação mais objetiva, para além de um interminável e labiríntico confronto de falas, atos e versões, é a da construção narrativa dos “analistas” do “bolsonarismo”. A oposição entre Julliete e Lumena aparece, então, como um confronto paradigmático entre a verdade e a mentira, a estratégia e a identidade. E a exclusão de Lumena, cerca de dois meses antes da final, a afirmação da “agressividade do racismo” e “um silenciamento”! O que se complementa com a identificação de “[o]utra bandeira comum à extrema direita”, “a luta contra o estereótipo do branco privilegiado”. Ou seja, um estigma pespegado a partir da defesa de um estereótipo... Ou com Fiuk, seu adversário na final, desde o início até mesmo acusado de artificialidade treinada em versões politicamente corretas.[6]

Despreza-se quaisquer outras contradições dos participantes, que povoaram as redes sociais. Como o perfil “problemático” dos participantes negros, ou a agressividade de Karol Conká, evidente até pelos prejuízos sofridos.[7] Algo tão evidente que suscitou uma polêmica sobre o perfil “problemático” dos participantes militantes “de esquerda”, negros e feministas. Tão evidente que até suscitou uma acusação de um plano com o objetivo de desacreditar o movimento negro.[8] Tal desprezo pelo óbvio se explica pela naturalização do discurso militante como intrínseca e previamente correto. E idêntico. A perspectiva identitária obnubila as contradições dos que possuem “lugar de fala” e reconhece na homogeneidade, ainda que simplória, como sinceridade. A verdade está em ser idêntico.

RAZÕES DA VITÓRIA

 E qual seria a chave para entender como Julliete atravessou olímpica a guerra de “lacrações” do BBB.[9] A crer na versão exposta no artigo, e presente nas redes, é uma sintonia entre a opinião pública, ou uma amostragem importante dela, e opiniões de “extrema-direita”, violentas, preconceituosas, odiosas.

O pensamento identitário vê no “negativo” do bem absoluto o seu exato inverso: o mal absoluto. O pensamento identitário se caracteriza pelo desinteresse para com a realidade social fatual, trabalhar com símbolos e breviários ideológicos simplórios, “dando as costas aos conteúdos concretos do sistema antropossocial”. Pressupõe uma epistemologia essencialista, pela qual as coisas se resumem a um “conjunto determinado de características fixas [e se] [p]erde de vista o movimento do real, o permanente estado de processo”. Capta pois a realidade “como fantasia, ilusão, mito e metafísica anti-histórica”.[10] Incapaz de apreender o real em movimento, de reconhecer ou ter um horizonte de mudança. Uma perspectiva incapaz “de formular um interesse comum”.[11]

A LINGUAGEM LINEAR NÃO COMPREENDE A REALIDADE DIALÉTICA

É que o que os bravos “analistas” interpretam como o "caos como método", “uma tática com um comportamento errático e confuso”, o “caos”, é lido pelas pessoas comuns, o “brasileiro médio”, como o cotidiano da vida social. O humor, a ironia e o jogo relativamente errático dos diálogos cotidianos não são vistos – ao arrepio dos ordenamentos prescritivos – como contravenção, crime ou “maquiavelismo”, o “[s]ou muito palhaça, pode ser que eu fale uma besteira ou magoe alguém com a minha ironia”, de Julliete é perfeitamente compreensível na experiência social popular.[12]

A “ambiguidade” de Julliete, que é buscada na avaliação de um “jornalista” sensacionalista, é nada mais, ou menos, que da natureza das relações humanas cotidianas. Citar Hegel sobre outro filósofo a propósito disto, como fazem os “analistas” é de uma pobreza intelectual profunda, um verniz que só faz evidenciar a rata. Um perfume intelectual que não esconde a profunda incapacidade de lidar com o real contraditório e tenso.

Pontuar a demolição da personagem com depoimentos de outros participantes pode parecer algo diverso do pastiche intelectual de citar uma cientista política ou Hegel, mas não é. As acusações de ser “chata” e, principalmente, a cobrança de Fiuk de que fosse “mais transparente, mais sincera”, e a acusação de trabalhar com ironia, são a mesma coisa. O manejo “intelectual” rasteiro e a delimitação opiniática são faces da mesma ideia prévia de prescrição ideológica, política, comportamental e de linguagem.

OPTOFOBIA

Os autores do repto contra a Juliette bolsonarista acusam, previamente, os disso discordarem de “optofobia”, o que seria o medo de abrir os olhos. Como adiantamos, não é estranho que se diga que os “sem noção” e os “hegemônicos” são o mesmo. Trata-se de uma percepção do povo. Mas é pior, embebida na superstição identitária, tal concepção não considera a possibilidade de convencimento. O voto no BBB, ou o voto em geral, é um decalque do reacionarismo popular, além disso manipulado pelos fios invisíveis de uma teoria da conspiração.

Numa comparação cômica de Julliete com o ex-juiz e ex-ministro Sérgio Moro, diz-se que “Juliette acrescenta que não é tão autoritária assim, pois, caso alguém tenha um argumento que ela considere bom, está disposta a aceitar”. Não há argumentos, não há nuances, não há debate possível. A justiça e a bondade exalam de cores, gêneros e sexualidades e de seus “lugares de fala”. O autoritarismo e a maldade, por conseguinte, também. E a linguagem é binária, simplória, e é dividida entre o correto e o incorreto, entre o que pode ou não ser dito.

O BBB não tem importância. O que tem importância é esta incapacidade de aceitar a complexidade da experiência social e da linguagem que se manifesta de forma ridícula num entretenimento um tanto tosco. Cegueira pouca é bobagem. E os 90,1% dos votos em Juliette, contra 4,62% do cartilhesco Fiuk têm o seu significado.[13]

 



[1] Ratinhos na caixinha. https://www.facebook.com/wlamir.silva.9/posts/3753424011407745

[2]Jairo Malta e Isabelle Strobel. Por que Juliette do BBB parece a tropa de choque bolsonarista. Folha de São Paulo. 4.mai.2021. https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2021/05/por-que-juliette-do-bbb-parece-a-tropa-de-choque-bolsonarista.shtml, acessado em 4 de maio de 2021.

[3] Os votos podem ser multiplicados por máquinas, ou IPs, não sendo exatamente o número de pessoas.

[4] Na ocasião da publicação já era claro que a moça era “favorita do jogo”, confirmado largamente.

[5] O que é o “gabinete do ódio”, que virou alvo da CPMI das Fake News. Gazeta do Povo. 06/12/2019. https://www.gazetadopovo.com.br/republica/gabinete-do-odio-alvo-cpmi-fake-news/ 

[6] Historiadoras falam de aulas que deram para Fiuk: "Está distorcendo"... Universa UOL. 30.1.2021.

https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2021/01/30/fiuk-bbb.htm?cmpid=copiaecola, acessado em 5 de maio de 2021.

[7] Ver BBB 21: Karol Conká acumula prejuízos e perde contratos. Terra. 11.2.2021.

https://www.terra.com.br/diversao/tv/reality-shows/bbb-21-karol-conka-acumula-prejuizos-e-perde-contratos,0a36fecaa0bae8882af6dfcd1ec2e43acsn0589l.html, acessado em 5 de maio de 2021.

[8] Ver BBB 21: 'Esquerda criou palco, ganhou espelho e não gostou do que viu', diz filósofo sobre o reality. BBC News Brasil. 11.22021, e BBB21: a escolha do casting negro “problemático” não foi por acaso. Mundo Negro. 5.2.2021.

https://mundonegro.inf.br/bbb21-e-a-estrategia-para-negros-influencers/

https://www.bbc.com/portuguese/brasil-56014519

Acessados em 5 de maio de 2021.

[9] O artigo aqui citado reúne uma tendência nas redes, ver BBB21: Web enxerga transfobia em fala de Juliette. Observatório G. s/d. https://observatoriog.bol.uol.com.br/noticias/bbb21-web-enxerga-transfobia-em-fala-de-juliette, acessado em 5 de maio de 2021.

[10] Pedro Gómez García. Las desilusiones de la “identidad’. La etnia como seudoconcepto. In: Pedro Gómez García (org.). As ilusões da identidade. Madrid: Frónesis, 2000.

[11] Eric Hobsbawm. A política da identidade e a esquerda. In: Bruno Peixe Dias e José Neves (Coord.). A política dos muitos. Lisboa: Tinta da China, 2010.

[12] É elucidativo que se diga que a “autodescrição [...] poderia ser atribuída ao humorista Danilo Gentili, sem maiores explicações, o que denota uma configuração de campos dada por óbvia.

[13] No BBB 2019 venceu Paula Von Sperling, loura de olhos verdes que foi acusada de racismo durante o programa. No de 2020, Martha Assis, negra que se manifestou contra o racismo. Juliette é branca, mas nordestina. Ao que parece, o que move os votantes não são as cores, ou preconceitos, mas o discurso identitário obtuso, e a “ambiguidade” de Juliette convenceu mais, e muito, que a “sinceridade identitária”.


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