IRRESPONSÁVEIS

 Wlamir Silva é professor e historiador

Quando lecionamos Brasil Império, por vezes, brincamos com a fórmula da Carta Constitucional de 1824, pela qual a pessoa do Imperador era, além de inviolável e sagrada, irresponsável. Pensar a disposição constitucional a par do uso cotidiano do termo dá, às vezes, uma boa conversa.

Lemos na imprensa que o Ministério Público (MP) pressiona para que o Tribunal de Contas da União (TCU) alerte o presidente da República de que se ele não vetar partes do orçamento aprovado pelo Congresso nacional ele pode cometer "crime de responsabilidade" ou, mesmo "crime comum".[1]

A "irregularidade" que tornaria inexequível o orçamento é a do inchaço de emendas parlamentares. Pomos aspas em irregularidade, afinal, qual ela seria? Inexequibilidade por descaso com as questões fiscais? As emendas, afinal, são legais, até mesmo impositivas...

Ao presidente da República se aponta o ônus de infringir dispositivos da Lei orçamentária, quando muito, se estende à equipe econômica de governo responsabilidade pelo papel exercido nas negociações com o Congresso. Mesmo que o ministro da Economia tenha apontado tais problemas.

O atual presidente é ameaçado de impeachment por (ir)resposabilidade fiscal, se não vetar os excessos contidos na proposta. E subjaz a acusação muda de que tenha usado emendas para adquirir governabilidade, ou barrar pedidos de impeachment. Ameaçado de impeachment se não vetar emendas concedidas para evitar um impeachment.

Tal uso de emendas, e muitas outras formas de tráfico de influência com dinheiro público é velha e recorrente. Mas não é saudável naturalizá-la. E o formato que adquire agora é tragicômico. Afinal, qual é a responsabilidade do Congresso diante do orçamento que ele aprovou?! E se ele derrubar os vetos presidenciais? Como os nossos imperadores, é o Poder Legislativo que é irresponsável?

Qual a responsabilidade de um Congresso que tornou as emendas individuais obrigatórias no exercício do orçamento em 2015, por emenda parlamentar, e as exaradas por comissões em 2019, por lei? De um Congresso que possui uma legião de assessores, mas não é capaz de verificar a legalidade fiscal? De um Congresso que se arroga benfeitor, mas alega que as emendas foram negociadas em troca de... um auxílio emergencial! De um Congresso que faz de tudo balcão!

Ou é mesmo o exercício de uma irresponsabilidade infraconstitucional, um espectro invertido do velho Império. E sob tal influência fantasmagórica não só o país fica ao sabor de ocupantes do Executivo, mas também sob a chantagem de um consórcio de fisiológicos e etéreos. Sob uma “direção” que impede a construção de planos nacionais – amplo ou específicos –, perde esforços e recursos em agenciamentos desarticulados e propenso à corrupção e é incapaz da tarefa substantiva da elaboração e fiscalização orçamentária. Incapaz por fisiológico ou por infantil “terraplanismo contábil”.

D. Pedro I e o Congresso Nacional
na aprovação do orçamento de 2021

E esta esquisitice, que vai causar euforia nos engajados em “derrubar o governo a qualquer custo”, devia nos trazer à cena – picadeiro? – algo mais grave. Fala-se aqui e ali em parlamentarismo, sou cada vez mais simpático, aliás. Mas de que serve falar disso como, agora, ação casuística? Do que serve diante do Parlamento que temos? E de ausência de perspectivas de reforma política. Reforma política minimamente séria, que questione as emendas, a rotação de representantes e as máquinas de gabinetes. Não os cosméticos votos por lista, distritos, financiamento de campanha e outros.

Mas é mais. É preciso que os que se posicionam por mudanças no país abandonem o fetiche pelos executivos, que passem a ver o Parlamento como espaço por excelência de formulação e fiscalização política, de qualquer governo. Mas, para tanto, é preciso elaborar diagnósticos do país, pensar coletivamente e nos espaços públicos perspectivas e horizontes. O que vale para eleições e além delas. E para isto não se pode “vender” utopias simplórias e “paraísos na terra” que embalam discurso oposicionista inconsequente e, em seguida, se acomodam nas benesses da irresponsabilidade...

É da prática política que enfrente a realidade sem contorcionismos e sem arroubos etéreos que se poderá renovar perspectivas políticas transformadoras. E isso vai do contencioso histórico das experiências socialistas ao que realmente se espera e pretende mudar na sociedade hoje, passando pelas prosaicas contas públicas...
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[1]
Ver Sanção do Orçamento poderá configurar crime fiscal, alerta Ministério Público no TCU a Bolsonaro. O Globo. 06/04/2021. https://oglobo.globo.com/economia/sancao-do-orcamento-podera-configurar-crime-fiscal-alerta-ministerio-publico-no-tcu-bolsonaro-24957620

 

 


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