A DITADURA MEMÉTICO-HISTÓRICA

 Wlamir Silva é professor e historiador



O pior no debate público é a sua falta de substância. Isso vale para o embate algo histérico, concentrado na efeméride, entre os da "Ditadura nunca mais", que sugerem uma atualidade anacrônica e ficcional de fatos quase sexagenários, e os da "Defesa da democracia pela Revolução", que insistem em cultuar um fato de desdobramentos trágicos, ao arrepio até mesmo da percepção dominante das Forças Armadas, às quais pedem também um arroubo anacrônico.

E quando falamos em debate público, miramos o conjunto da sociedade, incluindo muitos que, para alguns, não contam para ele. Uma massa tida por incapaz, que é nada menos que a imensa maioria, como demonstram os incômodos que eventualmente causam quando votam, em quem votam ou por absterem-se, anulando ou "em branco", ou mesmo não comparecendo. Aqueles denominados incapazes, ou movidos pelo "estômago", e alcunhados por farta e infinita lista de apelidos desqualificantes.

Na academia, nas universidades e seu entorno, nas bolhas "bem-pensantes", vigora um tácito desprezo por estes entes incapazes. Numa curiosa demofobia que anui, mudamente, a velhas considerações liberais do século XIX sobre a "ditadura do número" contida no incômodo sufrágio universal, também revisitada pelo Fascismo no século passado. Ainda que sob a "profissão de fé" democrática e, mesmo, acreditem, verborreias antiliberais e anticapitalistas.

Está ali a origem primeira das campanhas meméticas, dos slogans altissonantes e das prescrições arrogantes que servem para tudo, por que não serviriam para a tratar de fatos históricos de 60, 40, 30 anos de idade? E a cultura memética se funda na crença da eficácia do meme, da unidade mínima de informação, com impacto imagético e voltados para os sentidos básicos e as emoções. A despeito da validade destes elementos, a aposta excessiva em tal estratégia, ou a virtual redução a eles, possui seus fundamentos na demofobia supracitada: é o que a massa consome! Pode-se argumentar que há apelos para que se conheça a história do período, mas é uma falácia. Tais apelos não competem com a memética, e a memética agressiva não convida “o outro”. A síntese de tal aporia é o “vai ler um livro de história”, nem de longe um convite, e sim um marco distintivo.


Se nas academias é presente o contraditório, a nuance, o embate memético é sempre binário. A categoria de “totalitarismo” – à qual não nos filiamos -, dominante no meio acadêmico, desaparece por ser uma nuance incômoda. Por exemplo, as teses de que o golpe se deu, entre outras coisas, porque direita e esquerda não se importavam com a democracia, ou que a esquerda tinha inclinações totalitárias, ou ainda que foi resultado de uma radicalização de ambos os “lados” do espectro político;[1] ou a consideração de certo consenso social do golpe, se possuem aceitação no âmbito do debate acadêmico[2], são rechaçadas com virulência no campo memético. E o são por quatro motivos: 1) a crença na eficácia de tais embates de tempo curtíssimo; 2) a convicção de que a massa da população não é capaz de apreender algo além disso; 3) o conforto de pertencimento a um grupo “civilizacionalmente seleto”; 4) a perspectiva teórica de que há objetos históricos “traumáticos” que suspendem a variedade relativa de interpretações e instituem um cânone de caráter ético-moral.[3]

O que propomos é a exata inversão de tal lógica: 1) é preciso enfrentar a disputa de história e memória constante e longamente no tempo, se o que ela é baldada ao fracasso; 2) é junto à massa da população que são mais necessárias as nuances e contrastes analíticos sobre o fato histórico, porque assim não se afrontam memórias ou se impõem prescrições repugnantes à experiência social e à necessária e desejável autonomia de indivíduos e grupos sociais; 3) os embates de memória e política devem ser voltados para o conjunto da sociedade, com a tolerância às memórias e posições oriundas da experiência social[4]; 4) não há temas-tabu, ou objetos especiais, porque a percepção da realidade e imbricada, virtualmente total, e a contribuição do conhecimento histórico não pode ser de prescrição ético-moral.

O mesmo roteiro pode ser verificado nos anos recentes, em especial no de 2018, quando a disputa de memória sobre a ditadura se divisava – ainda que bem menos do que alguns imaginam[5] – como elemento das eleições que se avizinhavam. Com o resultado conhecido. Não se trata apenas de uma questão ética, embora também o seja[6], mas de prática e estratégia intelectual e política. E isso se mostra nas redes sociais, na dita história pública e, talvez[7], em salas de aula. Onde quer que a História toque a sociedade.
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[1] Argelina C. Figueiredo. Democracia ou reformas? Alternativas democráticas à crise política,1961-1964. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993; Ver Jorge Ferreira. O governo Goulart e o golpe civil-militar de 1964. In. Jorge Ferreira; Lucília de Almeida Neves Delgado (orgs.). O Brasil republicano: o tempo da experiência democrática – da democratização de 1945 ao golpe civil-militar de 1964. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, Livro 3; Daniel Aarão Reis Filho. O colapso do colapso do populismo ou a propósito de uma herança maldita. In. Jorge Ferreira (org.). O populismo e sua história: debate e crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001; Daniel Aarão Reis. Ditadura, anistia e reconciliação. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol.23, n.45, p. 171-186, jan./jun.2010; Denise Rollemberg; Samantha Viz Quadrat. A construção social dos regimes autoritários. Brasil e América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

[2] Há uma perspectiva minoritária que pretende, a partir de um aporte ético-político, estigmatizar como “revisionismo”, ou, sutilmente, “negacionismo”, tais confrontos historiográficos. Ver Demian Bezerra de Melo (org.). A miséria da historiografia: uma crítica ao revisionismo contemporâneo. Rio de Janeiro: Consequência, 2014.


[3] Em relação aos quais deve haver uma “escritura intransitiva”, o que abarcaria mesmo os mais extremados relativistas. Ver Hayden White a propósito do Holocausto, em José Francisco C. Falcon. História e representação. In: Ciro Flamarion S. Cardoso e Jurandir Malerba (orgs.). Representações. Contribuições a um debate transdisciplinar. Campinas, SP: Papirus, 2000. No mesmo sentido, sobre o “trauma”, ver LACAPRA, D. Escribir la historia, escribir el trauma. Buenos Aires: Nueva Visión, 2005.


[4] Além das mediações de outras produções intelectuais e midiáticas.


[5] Um ponto a destacar é a constante referência à tortura, e o suposto apoio a ela, aos que, em qualquer nível ou grau, possam apresentar simpatia, ou apenas não abominar, o Regime Militar. O que desconhece que há os que duvidam de sua existência – diferença sutil, mas importante, de apoiá-la – ou os que, a rejeitando, simpatizam com aspectos do regime, ou mesmo relativizam a sua relação necessária com tais aspectos. Como exemplo, podemos aludir à memória do Estado Novo, do qual se construíram simpatias para com aspectos nacionalistas e industrialistas-estatistas apesar da tortura, isso já com apenas uma década, ou pouco mais que isso, e seguindo adiante no tempo.


[6] O que seriam o escondimento das referidas nuances e diversidade epistemológica e a imposição autoritária com base em um argumento de autoridade?


[7] A escola, aliás, também a universidade, possui uma opacidade que apenas nos permitem ilações quanto à proximidade, ou promiscuidade, com a memética referida.



Comentários

Unknown disse…
Professor Wlamir, muito boa a reflexão.👍