POR QUE A EX-QUERDA BRASILEIRA ODEIA O SUFRÁGIO UNIVERSAL?

Manifestantes invadiram o Congresso Nacional nos protestos de junho de 2013 Foto: Gustavo Gantois / Terra
Wlamir Silva é professor e historiador

É recorrente entre grupos e gentes que se têm como “esquerda” uma mais ou menos explícita rejeição ao povo brasileiro, ou, numa formulação que até se pretende “sociológica”, até “psicológica” ao “brasileiro médio”.[1] A este personagem icônico se imputa a culpa pela eleição de Jair Bolsonaro, entendida como uma tragédia, a atribui-se um rol de “qualidades”: “é preconceituoso, violento, analfabeto (nas letras, na política, na ciência... em quase tudo). É racista, machista, autoritário, interesseiro, moralista, cínico, fofoqueiro, desonesto”.[2] “Em prosa”, diz uma antropóloga militante:

O brasileiro médio "odeia viado", odeia pobre — mesmo quando é pobre — não odeia "a pobreza", odeia "o pobre", divide as mulheres entre as putas e as mulheres pra casar, é racista e de um "racismo cordial" nojento, pois diz que tem amigo negro, mas não se importa que a polícia mate jovens negros inocentes. As mulheres são AS grandes machistas, pois o machismo feminino é o que forma homens e mulheres machistas na socialização primária das crianças e elas NÃO QUEREM se libertar dos padrões coercitivos do machismo... [3]

A conclusão da antropóloga-militante abre o texto: “É o povo que está elegendo o fascismo”.[4] Não é difícil perceber que o mal decisivo perpetrado pelo brasileiro médio o é pelas eleições. É o momento no qual a sua medianidade se faz poderosa pelo número. Pelo número, o brasileiro médio exara – ou exala? – um governo que o reflete, o expressa. Ocasião em que este povo, munido de seus vulgares títulos eleitorais o povo de caráter teratológico põe, inclusive, em risco avanços civilizatórios feitos à sua revelia e ao arrepio da sua má índole. Impostos de fora – “chegaram ao país” – e que “[se] materializaram em legislações, em políticas públicas (de inclusão, de combate ao racismo e ao machismo, de criminalização do preconceito), em diretrizes educacionais para escolas e universidades”.[5]

Se vêm de fora, foi preciso de tais conquistas tivessem por aqui seus receptores. O sociólogo Ivann Lago diz que isso se deu “pela pressão exercida pelos instrumentos jurídicos e policiais”. E há aí duas omissões. Uma talvez por modéstia, porque se elide a formulação, ou a adaptação, das nossas elites intelectuais, “antenas civilizatórias”. Outra porque parte significativa delas passou pelo Parlamento, casas eleitas pelo mesmo brasileiro médio e à qual poucos deixarão de taxar como expressão deste mesmo “personagem”.

Não é à toa que a “fogueira inquisitorial” do brasileiro médio se dá pelo desfiar de um rosário de pecados relativos a costumes ou de destemperos de linguagem. Não é à toa que questões relativas à organização socioeconômica e política do país sejam virtualmente ausentes. E isto se dá porque esta ex-querda: 1) não faz ideia do que propor neste campo; 2) quando o faz é de forma simplória, em linguagem “memética”; 3) se apoia numa mítica “idade de ouro”, na qual resplandecia a sua “civilização perdida”; 4) as pautas de costumes e identitárias convivem bem, e midiaticamente incensadas, com a ordem socioeconômica e política em voga.[6] 5) Outra questão, correlata, é o paradoxo de que o mesmo brasileiro médio, bem recentemente, sufragava de forma satisfatória, o que, afinal, os levou à barbárie em um par de anos?

Frente a este enigma sociopolítico, é preciso apelar para certa “psicanálise de massas”. Reprimido, como vimos, judicial e policialmente, o brasileiro médio acumulou ressentimentos[7] e os pôs a serviço do primeiro que lhe pareceu capaz de expressar seus preconceitos. Destaca-se, portanto, o liame do brasileiro médio com a retórica de Jair Bolsonaro, dando vazão – esperanças de liberdade? – aos preconceitos arraigados no cotidiano, nas piadas, comentários. Numa reação ao “politicamente correto”. Um presidente que podia ser visto como “um ‘cidadão comum’” com direito à expressão.[8]

Há vários problemas com esta interpretação do fenômeno Bolsonaro. E não são problemas meramente “acadêmicos”, mas políticos, tanto quanto é possível fazer esta distinção. Comecemos pela intrigante desqualificação apontada no fim do parágrafo anterior: a desqualificação do “cidadão comum”, ou do “homem comum”, assim como do “senso comum”. O que significa negar o homem comum? Podemos aqui aventar duas possibilidades: 1) a confissão de que o melhor seria a extinção ou restrição do sufrágio universal, como propunha o liberal Stuart Mill[9]; 2) o voto corporativo à Mussolini, como forma de combater a “ditadura do número”; 3) um sistema de conselhos à maneira soviética, em especial nos anos ardorosos da revolução. Fora tais opções, resta uma utópica, simbólica, República platônica. No mundo real, o que este enfado para com o homem comum significa, a qual situação melhor pode levar?

Outra aporia diz respeito à homogeneização destes defeitos.[10] Homogeneização da massa de homens comuns, como se eles compartilhassem todos dos mesmos erros. Homogeneização dos defeitos como se fossem os mesmos em grau e gravidade, partindo da violência, passando pela discriminação, até a complexa fronteira da linguagem cotidiana, inclusive à piada. Homogeneização, ou identificação, de costumes com determinados postulados políticos, econômicos e sociais, como o (Neo)Liberalismo. A centralidade de uma agenda de costumes, associada à fragilidade de formulação e difusão de planos sócio-econômico-políticos, empurra o brasileiro médio para agendas conservadoras, à direita do espectro político. E não só quanto ao Executivo, mas também ao Parlamento, ou mesmo a tendências antidemocráticas.

Tal homogeneização e identidade obstrui qualquer aproximação de amplos setores da sociedade. O que não é surpresa, vista a desqualificação prévia do “brasileiro médio”, visto como ignorante e manipulado, “um exército de fantoches”.[11] Em termos gramscianos, é o abandono da persuasão permanente voltada para amplos setores da população, a disputa pelo senso comum, pela direção intelectual e moral da sociedade.[12] Estabelecida tal interdição, o que restaria a fazer à esquerda – sem aspas – no horizonte político brasileiro? Se as ruas ou as insurreições são ainda mais improváveis, resta um surdo incômodo para com o sufrágio universal, pelo qual o brasileiro médio se manifesta anônima e, na medida do possível, livremente.



[1] Ver, a título de exemplo, o artigo de Ivann Lago “O Jair que há em nós”. https://ivannlago.blogspot.com/2020/02/o-jair-que-ha-em-nos.html

Tal opinião também existe à direita do espectro político, ver Bolívar Lamounier, Bolsonaro: seis por meia dúzia? Revista Isto É. 12/jun/20. https://istoe.com.br/bolsonaro-seis-por-meia-duzia/

[2] Ivann Lago, op. cit.

[3] Valeria Brandini. Aprenda a mandar a[sic] merda. WWW.ALDEIANAGO.COM.BR, 16 de Novembro de 2019. http://www.aldeianago.com.br/artigos/91-dando-o-que-falar/22913-aprenda-a-mandar-a-merda-por-valeria-brandini

[4] Idem.

[5] Ivann Lago, op. cit. Há aí certa “licença poética”, como a de que “[o] machismo foi tornado crime”

[6] Os elementos relativos às estruturas políticas também associam autoridade, sem escalas, para os costumes, assim “[o] ‘brasileiro médio’ gosta de hierarquia, ama a autoridade e a família patriarcal, condena a homossexualidade, vê mulheres, negros e índios como inferiores e menos capazes, tem nojo de pobre”, ver Ivann Lago, idem.

[7] Entrevista com a filósofa Catarina Dutilh Novaes. https://tutameia.jor.br/bolsonarismo-e-movimento-dos-ressentidos-diz-filosofa/

[8] Ivann Lago, idem.

[9] Mill propôs o “voto plural”, excluindo os pedintes, os analfabetos e os que não pagam imposto de renda, além de votos diferenciados, de acordo com suas ocupações, com preferência para as atividades intelectuais e artísticas. Ver C. B. Macpherson. La democracia liberal y su epoca. Buenos Aires: Alianza, 1991, p. 74.

[10] Mesmo que apenas de passagem, é preciso observar que o “defeito” é juízo de valor prévio, e que tal definição se complica quando tida como objetivamente superior...

[11] Ivan Lago, idem.

[12] Antonio Gramsci. Cadernos do cárcere. Vol. 5. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 62, e Volume 2, p. 53.

Comentários

Bom, a manchete é mentira - a maior parte da ex-querda brasileira é o pt, e o pt é simplesmente fanático no sufrágio eleitoral, só existe para isso, arrasta tudo para isso.
Já o conteúdo trata de dois assuntos interessantes, que são a demonização do homem comum, ou ao menos sua responsabilização por mais do que seria razoável, e as eleições diretas, que seriam automaticamente culpadas também. Acho que é importante separar bem esses dois assuntos, e discutir a relação entre eles. Não é lógico que uma mesma pessoa culpe ao povo e às eleições pela mesma culpa - Se as eleições refletem a vontade do povo, a culpa é só do povo e as eleições são boas; Se elas não refletem, então o povo não tem culpa de nada. Acho que quem culpa o povo está protegendo esse formato de eleições, porque está afirmando que elas refletem suas vontades. Existem dados de sobra para desmentir a culpa do povo. Ex: Pesquisas, que todas mostram o povo desejando mais saúde, educação, segurança etc. enquanto elegem políticos que todos sabem que não defendem nada disso. Também experiências com democracias de diferentes tipos, em que as pessoas nunca votam por clientelismo, corrupção, obscurantismo etc. As pessoas só votam nessas coisas quando votam em pessoas. Escolher pessoas não é o forte do ser humano. Basta dizer que existem empresas especializadas em contratação de empregados, com psicólogos, relações públicas, pessoas investigando a vida dos candidatos etc., e ainda assim muitas vezes os escolhidos por elas não se adaptam aos empregos. Sendo assim, é necessário, primeiro, que as pessoas possam depor os governantes todo santo ano. Segundo, é necessário facilitar a vida das pessoas para escolher: 1 - não obrigar ninguém a votar; 2 - universos eleitorais pequenos; 3 - voto distrital (apesar de todos os seus defeitos, que são muitos, mas é quase a única coisa que as pessoas entendem).
Wlamir Silva disse…
A manchete é uma provocação, Alex Lombello Amaral, e mentira ou verdade aí diz pouco. Eles vivem recitando que "se voto mudasse algo seria proibido", da Ema Goldman, que eles acham que é do Galeano, e enchendo o saco para votar neles...

De fato mostro é o paradoxo mesmo, e o mais importante é o desprezo pelo "homem comum". Tal desprezo vai além do sufrágio, mas passa por ele.

Eles não tratam de clientelismo ou coisas afins, nem de elementos socioeconômicos. De fato, é por isso que tendem a escorregar para os costumes.

Voto distrital ou não, por lista ou não, direto ou não (pensando em parlamentarismo), não elimina a necessidade de se exercer uma pedagogia política sobre o "homem comum"...
Wlamir Silva disse…
A manchete é uma provocação, Alex Lombello Amaral, e mentira ou verdade aí diz pouco. Eles vivem recitando que "se voto mudasse algo seria proibido", da Ema Goldman, que eles acham que é do Galeano, e enchendo o saco para votar neles...

De fato mostro é o paradoxo mesmo, e o mais importante é o desprezo pelo "homem comum". Tal desprezo vai além do sufrágio, mas passa por ele.

Eles não tratam de clientelismo ou coisas afins, nem de elementos socioeconômicos. De fato, é por isso que tendem a escorregar para os costumes.

Voto distrital ou não, por lista ou não, direto ou não (pensando em parlamentarismo), não elimina a necessidade de se exercer uma pedagogia política sobre o "homem comum"...