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É recorrente entre grupos e gentes que se têm como “esquerda” uma mais ou menos explícita rejeição ao povo brasileiro, ou, numa formulação que até se pretende “sociológica”, até “psicológica” ao “brasileiro médio”.[1] A este personagem icônico se imputa a culpa pela eleição de Jair Bolsonaro, entendida como uma tragédia, a atribui-se um rol de “qualidades”: “é preconceituoso, violento, analfabeto (nas letras, na política, na ciência... em quase tudo). É racista, machista, autoritário, interesseiro, moralista, cínico, fofoqueiro, desonesto”.[2] “Em prosa”, diz uma antropóloga militante:
O brasileiro médio "odeia viado", odeia pobre — mesmo quando é pobre — não odeia "a pobreza", odeia "o pobre", divide as mulheres entre as putas e as mulheres pra casar, é racista e de um "racismo cordial" nojento, pois diz que tem amigo negro, mas não se importa que a polícia mate jovens negros inocentes. As mulheres são AS grandes machistas, pois o machismo feminino é o que forma homens e mulheres machistas na socialização primária das crianças e elas NÃO QUEREM se libertar dos padrões coercitivos do machismo... [3]
A conclusão da antropóloga-militante abre o texto: “É o povo
que está elegendo o fascismo”.[4]
Não é difícil perceber que o mal decisivo perpetrado pelo brasileiro médio
o é pelas eleições. É o momento no qual a sua medianidade se faz poderosa pelo
número. Pelo número, o brasileiro médio exara – ou exala? – um governo que o
reflete, o expressa. Ocasião em que este povo, munido de seus vulgares títulos
eleitorais o povo de caráter teratológico põe, inclusive, em risco avanços civilizatórios
feitos à sua revelia e ao arrepio da sua má índole. Impostos de fora – “chegaram
ao país” – e que “[se] materializaram em legislações, em políticas públicas (de
inclusão, de combate ao racismo e ao machismo, de criminalização do
preconceito), em diretrizes educacionais para escolas e universidades”.[5]
Se vêm de fora, foi preciso de tais conquistas tivessem por
aqui seus receptores. O sociólogo Ivann Lago diz que isso se deu “pela pressão
exercida pelos instrumentos jurídicos e policiais”. E há aí duas omissões. Uma
talvez por modéstia, porque se elide a formulação, ou a adaptação, das nossas
elites intelectuais, “antenas civilizatórias”. Outra porque parte significativa
delas passou pelo Parlamento, casas eleitas pelo mesmo brasileiro médio
e à qual poucos deixarão de taxar como expressão deste mesmo “personagem”.
Não é à toa que a “fogueira inquisitorial” do brasileiro
médio se dá pelo desfiar de um rosário de pecados relativos a costumes ou
de destemperos de linguagem. Não é à toa que questões relativas à organização socioeconômica
e política do país sejam virtualmente ausentes. E isto se dá porque esta
ex-querda: 1) não faz ideia do que propor neste campo; 2) quando o faz é de
forma simplória, em linguagem “memética”; 3) se apoia numa mítica “idade de ouro”,
na qual resplandecia a sua “civilização perdida”; 4) as pautas de costumes e
identitárias convivem bem, e midiaticamente incensadas, com a ordem socioeconômica
e política em voga.[6] 5)
Outra questão, correlata, é o paradoxo de que o mesmo brasileiro médio,
bem recentemente, sufragava de forma satisfatória, o que, afinal, os levou à
barbárie em um par de anos?
Frente a este enigma sociopolítico, é preciso apelar para certa
“psicanálise de massas”. Reprimido, como vimos, judicial e policialmente, o brasileiro
médio acumulou ressentimentos[7]
e os pôs a serviço do primeiro que lhe pareceu capaz de expressar seus
preconceitos. Destaca-se, portanto, o liame do brasileiro médio com a
retórica de Jair Bolsonaro, dando vazão – esperanças de liberdade? – aos preconceitos
arraigados no cotidiano, nas piadas, comentários. Numa reação ao “politicamente
correto”. Um presidente que podia ser visto como “um ‘cidadão comum’” com
direito à expressão.[8]
Há vários problemas com esta interpretação do fenômeno
Bolsonaro. E não são problemas meramente “acadêmicos”, mas políticos, tanto
quanto é possível fazer esta distinção. Comecemos pela intrigante desqualificação
apontada no fim do parágrafo anterior: a desqualificação do “cidadão comum”, ou
do “homem comum”, assim como do “senso comum”. O que significa negar o homem
comum? Podemos aqui aventar duas possibilidades: 1) a confissão de que o
melhor seria a extinção ou restrição do sufrágio universal, como propunha o
liberal Stuart Mill[9];
2) o voto corporativo à Mussolini, como forma de combater a “ditadura do número”;
3) um sistema de conselhos à maneira soviética, em especial nos anos ardorosos
da revolução. Fora tais opções, resta uma utópica, simbólica, República platônica.
No mundo real, o que este enfado para com o homem comum significa, a
qual situação melhor pode levar?
Outra aporia diz respeito à homogeneização destes defeitos.[10]
Homogeneização da massa de homens comuns, como se eles compartilhassem todos
dos mesmos erros. Homogeneização dos defeitos como se fossem os mesmos em grau
e gravidade, partindo da violência, passando pela discriminação, até a complexa
fronteira da linguagem cotidiana, inclusive à piada. Homogeneização, ou
identificação, de costumes com determinados postulados políticos, econômicos e
sociais, como o (Neo)Liberalismo. A centralidade de uma agenda de costumes,
associada à fragilidade de formulação e difusão de planos sócio-econômico-políticos,
empurra o brasileiro médio para agendas conservadoras, à direita do
espectro político. E não só quanto ao Executivo, mas também ao Parlamento, ou
mesmo a tendências antidemocráticas.
Tal homogeneização e identidade obstrui qualquer aproximação
de amplos setores da sociedade. O que não é surpresa, vista a desqualificação
prévia do “brasileiro médio”, visto como ignorante e manipulado, “um exército
de fantoches”.[11]
Em termos gramscianos, é o abandono da persuasão permanente voltada para amplos
setores da população, a disputa pelo senso comum, pela direção intelectual e
moral da sociedade.[12]
Estabelecida tal interdição, o que restaria a fazer à esquerda – sem aspas – no
horizonte político brasileiro? Se as ruas ou as insurreições são ainda mais
improváveis, resta um surdo incômodo para com o sufrágio universal, pelo qual o
brasileiro médio se manifesta anônima e, na medida do possível, livremente.
[1]
Ver, a título de exemplo, o artigo de Ivann Lago “O Jair que há em nós”. https://ivannlago.blogspot.com/2020/02/o-jair-que-ha-em-nos.html
Tal opinião também existe à direita do espectro
político, ver Bolívar Lamounier, Bolsonaro: seis por meia dúzia? Revista Isto
É. 12/jun/20. https://istoe.com.br/bolsonaro-seis-por-meia-duzia/
[2]
Ivann Lago, op. cit.
[3]
Valeria Brandini. Aprenda a mandar a[sic] merda. WWW.ALDEIANAGO.COM.BR, 16 de Novembro de
2019. http://www.aldeianago.com.br/artigos/91-dando-o-que-falar/22913-aprenda-a-mandar-a-merda-por-valeria-brandini
[4]
Idem.
[5] Ivann
Lago, op. cit. Há aí certa “licença poética”, como a de que “[o] machismo foi
tornado crime”
[6] Os
elementos relativos às estruturas políticas também associam autoridade, sem
escalas, para os costumes, assim “[o] ‘brasileiro médio’ gosta de hierarquia,
ama a autoridade e a família patriarcal, condena a homossexualidade, vê
mulheres, negros e índios como inferiores e menos capazes, tem nojo de pobre”,
ver Ivann Lago, idem.
[7] Entrevista
com a filósofa Catarina Dutilh Novaes. https://tutameia.jor.br/bolsonarismo-e-movimento-dos-ressentidos-diz-filosofa/
[8] Ivann
Lago, idem.
[9]
Mill propôs o “voto plural”, excluindo os pedintes, os analfabetos e os que não
pagam imposto de renda, além de votos diferenciados, de acordo com suas
ocupações, com preferência para as atividades intelectuais e artísticas. Ver C. B. Macpherson. La democracia
liberal y su epoca. Buenos Aires: Alianza, 1991, p. 74.
[10]
Mesmo que apenas de passagem, é preciso observar que o “defeito” é juízo de
valor prévio, e que tal definição se complica quando tida como objetivamente
superior...
[11] Ivan
Lago, idem.
[12]
Antonio Gramsci. Cadernos do cárcere. Vol. 5. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2002, p. 62, e Volume 2, p. 53.
Comentários
De fato mostro é o paradoxo mesmo, e o mais importante é o desprezo pelo "homem comum". Tal desprezo vai além do sufrágio, mas passa por ele.
Eles não tratam de clientelismo ou coisas afins, nem de elementos socioeconômicos. De fato, é por isso que tendem a escorregar para os costumes.
Voto distrital ou não, por lista ou não, direto ou não (pensando em parlamentarismo), não elimina a necessidade de se exercer uma pedagogia política sobre o "homem comum"...
De fato mostro é o paradoxo mesmo, e o mais importante é o desprezo pelo "homem comum". Tal desprezo vai além do sufrágio, mas passa por ele.
Eles não tratam de clientelismo ou coisas afins, nem de elementos socioeconômicos. De fato, é por isso que tendem a escorregar para os costumes.
Voto distrital ou não, por lista ou não, direto ou não (pensando em parlamentarismo), não elimina a necessidade de se exercer uma pedagogia política sobre o "homem comum"...
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