Wlamir Silva é professor e historiador
〰
Há muita gente que atribui a eleição de Jair Bolsonaro a um
descaso de parte significativa da sociedade para com a memória da Ditadura
Militar (1964-1985), em especial com a violência e a tortura. E se horroriza com o fato de que parte significativa da
sociedade não tenha se importado com isso, votando nele ou não votando para
barrá-lo, e mesmo não se opondo a ele com o ardor desejado. Diz-se que não há
diálogo com quem tolera um político que defende o Regime Militar e, embora há
20 anos, o tenha feito com relação à eliminação de adversários e a tortura.
Este mal-estar faz, inclusive, com que intelectuais,
historiadores à frente, ponham como horizonte especialmente necessário o
“resgate” da memória da Ditadura Militar de 1964. Algo como um remédio urgente,
para o que seria uma patologia da memória nacional. Percebê-lo como patologia
traz ainda uma justificativa para uma rejeição de teor moral dos que não
abominam e rejeitam o personagem. Para usar uma fórmula corriqueira: se você
admite quem defende a ditadura e a tortura, nossa divergência não é política, é
de caráter, é moral!
Tal fato nos faz lembrar que já em meados dos anos 1950, e
isso só aumenta até 1964, a fgura de Getúlio Vargas não era tida por abominável
por setores progressistas. E mesmo de esquerda, do espectro político
brasileiro. Às vésperas do golpe, o varguismo já era um patrimônio bastante
palatável. Seus herdeiros eram lideranças à esquerda e os comunistas, como
denunciava um teórico do “populismo” iam a reboque deles. Os militares que
empolgaram o poder, ainda sob sombras udenistas, se dedicariam a destruir o
varguismo.
É claro que o suicídio do líder gaúcho facilitou. Mas é
pouco vê-lo desta forma. O Getúlio “nos braços do povo” de 1950 já o fizera,
embora ainda não quanto aos comunistas. No que diz respeito aos setores
populares, o Queremismo já o adiantara em 1945. Vargas foi ditador do seu Estado Novo
de 1937 a 1945, o regime que mais se aproximou do Nazifascismo no país, que extraditou
opositores – inclusive Olga Benário Prestes, judia e comunista, para a Alemanha,
antes mesmo do golpe do Estado Novo –, promoveu duríssima repressão e censura a
opositores e, enfim, bárbara tortura, incluindo alicates, maçaricos e arames
incandescentes.
Em 1954, ano do suicídio de Vargas, contavam-se apenas nove anos
do fim do Estado Novo, em 1963, às vésperas do golpe, mais nove anos. Vinte
anos se contam o fim de uma ditadura e a implantação da outra. No célebre discurso
da Central do Brasil, em 13 de março de 64, Jango exaltava Vargas como “o
grande e imortal”.[1] A
violência, as deportações para a morte pelo nazismo ou a tortura não era mais
empecilho essencial para tal. A memória de Vargas era perdoada, socialmente perdoada...
É claro que há outras e muitas implicações na comparação
entre os dois períodos. Pode-se fazer um reposicionamento de Vargas na
trajetória trabalhista, de Jango e Brizola, arrolar legislação trabalhista e
desenvolvimentismo. Mas há aí também controvérsias quanto ao regime de 64, que
manteve tais legislações, teve laivos desenvolvimentistas e, até, deu passos
importantes no campo da educação superior e ciência. De todo modo, tais
esforços não permitem a citada exclusão de ordem moral.
Quando da eleição de Bolsonaro, em 2018, contavam-se trinta
e três anos do fim da Ditadura iniciada em 1964.[2]
Também quase vinte anos de suas declarações desastradas quanto à tortura e o
assassinato. Claro, a concepção de uma “guerra” continua, mas ela é mais
nuançada, e passa-se a negar a tortura, o que é uma sutileza talvez atrevida,
mas que altera o uso na memória. A tortura é rejeitada pela população, embora houvesse
uma pequena parcela que admitia, em 2018, que “o governo possa usar de
violência para tentar obter confissões e informações de suspeitos”. O que
indica que a rejeição à tortura pode ser conquistada como princípio.
Mas em pesquisa acadêmica conduzida na USP, em 2012, se apurou
que “47,5% dos brasileiros toleram tortura para obter provas”. E o nexo
observado se relacionou a “casos de estupro, tráfico e sequestro”, o que
explica outros aspectos dos resultados políticos recentes.[3]
O que aponta para um necessário trabalho de convencimento social, mas também
que os liames percebidos por parte da sociedade não são propriamente de ordem política.
Ou seja, que não remetem a uma longínqua memória de violência e tortura de
militantes, mas ao “criminoso comum”, e o forçar desta associação não ajuda a
nenhum combate de princípio à violência ilegal e à tortura, que certamente contaria com setores
amplos e de variado espectro ideológico.
Os tempos são outros, e os meios cibernéticos de informação
favorecem a circulação de memórias sobre a violência e a tortura da Ditadura Militar.
Mas também são, pelos mesmos fatores, tempos de uma memória fluida e incerta, além de acentuado presentismo. A
hipérbole memorialística que se quer impositiva e moralmente excludente pode
ser inócua ou, pior, contraprodutiva, no que tange ao combate civilizatório e
universal da tortura. Além de ser um diagnóstico errôneo e levar a ações
tacanhas, ainda que orgulhosas, do ponto de vista político.
[1] Discurso
de Jango na Central do Brasil em 1964. EBC, acessado em 12 de fevereiro de
2021. https://memoria.ebc.com.br/cidadania/2014/03/discurso-de-jango-na-central-do-brasil-em-1964
[2] A fase mais violenta do Estado Novo foi em seus primeiros anos, diminuindo com impasse de participação na Guerra, entre o Eixo e os Aliados, em 1940. Mas também as ações violentas do regime de 64 rarearam após 1975 e perderam seu suporte com a revogação das leis de exceção na virada de 1978 para 1979, levando, inclusive, historiadores a situarem ali o fim do Regime, aí contariam quase quarenta anos até 2018. Ver REIS, Daniel Aarão. Ditadura e democracia no Brasil: do golpe de 1964 à Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Zahar, 2014, p. 125, e VILLA, Marco Antonio. Ditadura à brasileira – 1964‐1985: a democracia golpeada à esquerda e à direita. São Paulo: LeYa, 2014, pp. 11 e 373.
47,5% dos brasileiros toleram tortura para obter provas, diz pesquisa. Globo, 5.6.2012.
http://g1.globo.com/brasil/noticia/2012/06/475-dos-brasileiros-tolera-tortura-para-obter-provas-diz-pesquisa.html
Comentários
Postar um comentário