Há os que apelam para o "progressismo civilizatório" do Judiciário, na figura do Supremo Tribunal Federal, como é o caso da ação impetrada pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), buscando ali a descriminalização do aborto.
[2] Fato curioso é o de que este recurso de excelência civilizatória se dá junto a um órgão, ou a uma corporação, de franca maioria masculina, com apenas duas mulheres entre os onze juízes.
A opinião das mulheres importa, pois, como virtualidade identitária, e não quando as mulheres reais se manifestam. É próprio do pensamento identitário rejeitar tais "incoerências". Se uma mulher é contrária ao prescrito como politicamente correto é porque ela não se percebe como tal, é manipulada e, no limite, não é... mulher. Assim a superioridade dos homens do STF se impõe contra as mulheres que não são conscientes de sua identidade.
No caso do aborto, a inconsciência identitária e o conservadorismo é, apontam os entusiastas pró-aborto, permeada pela religiosidade. E isto implicaria numa contradição para com o Estado laico. Além disso, afirma-se uma suposta cientificidade dos critérios do que seria uma “vida”, das “evidências sociológicas”, e, a partir deles, se denuncia o que seria a barbárie. Uma equação simplória que reduz os termos de uma questão filosófica e moral a uma oposição binária entre civilização e barbárie.
O pano de fundo do discurso “civilizatório”, “científico” e moralmente imperativo é uma rejeição às visões de mundo fortes – no caso francamente predominante – da população. Busca-se contornar o que se considera um inaceitável conservadorismo popular. Contornar o que, mal ou bem, se acha sedimentado no sistema representativo e, ainda mais, evitar que esta população de bárbaros se manifeste, por exemplo, em referendos.
[3]
É interessante lembrar o referendo sobre o desarmamento, realizado em 2005, em que a proposta “civilizatória” foi amplamente derrotada (63%), e isso com pesquisas de opinião que apontavam no sentido inverso poucos meses antes. De fato, com uma mudança “conservadora” a partir das campanhas, do debate, sobre o tema.
[4] Ali se reforçou o receio para com a opinião popular
[5], que já existia e se aprofundou com o ascenso do voto conservador.
[6]
Sem reduzir a importância da questão do aborto, ou das demandas de costumes em si – com variações, que vão desde a união homoafetiva à descriminalização das drogas, passando pela maioridade penal -, é extremamente preocupante a crescente desconfiança com relação à opinião popular. Não porque ela seja, em si, boa – aliás, como se “em si” as “civilizatórias” o sejam... quem decide? -, mas porque ela pressupõe a exclusão elitista destas percepções e experiências populares.
No país é reconhecido o papel das questões de costumes nas eleições recentes. Talvez até se perceba isso menos do que se deveria, se consideramos os níveis locais e regionais e, menos siderados pelo fetiche do Executivo
[7], olharmos para os perfis legislativos. Fenômeno, aliás, mundial, um dos ingredientes do crescimento da “direita” em variados contextos nacionais.
[8] Negar a opinião popular e evitá-la não tem sido eficaz. Talvez caiba perguntar se seria bom que o fosse.
De fato, este esquivamento com relação à opinião popular e ao debate público tende a fortalecer forças políticas que apostam na denúncia de uma suposta ditadura de minorias. Pior, excluir amplos setores populares como indignos de uma pedagogia política dialógica é ferir de morte o princípio de que qualquer mudança substancial precisa de que eles mesmos sejam protagonistas.
[9] Mais do que do aborto, ou qualquer outra questão, trata-se de um paradigma de graves consequências.
Como uma das falsas polaridades que contaminam a vida política atual, quer-se opor o direito de propor inovações no campo dos costumes ao direito de defender usos e ideias do senso comum estabelecido. Não é esta a questão. Trata-se de refletir sobre o paradoxo de defender a democracia contornando o povo, de como aprofundar a democracia, radicalizá-la
[10], estigmatizando este mesmo povo. A seguir assim, o aborto em curso é o da democracia.
🅽
No
Brasil, só 16% apoiam aborto por desejo da mulher, diz pesquisa conduzida em 25
países. O Globo. 20.8.2020.
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