O ABORTO DA DEMOCRACIA


Wlamir Silva, professor e historiador

🆃

Há quem finque o pé que só as mulheres podem opinar sobre aborto. Segundo uma pesquisa, no Brasil, "as mulheres são um pouco mais favoráveis à legalização do aborto sempre que a grávida desejar, com 17% de apoio, enquanto o índice entre os homens é de 15%". Mas como se vê, a diferença entre as opiniões por sexo é mínima, e se aproximam na pequeníssima aprovação social à forma mais livre da prática do aborto.[1]

Manifestantes pro e contra o aborto no caso da menina estuprada de 10 anos

Há os que apelam para o "progressismo civilizatório" do Judiciário, na figura do Supremo Tribunal Federal, como é o caso da ação impetrada pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), buscando ali a descriminalização do aborto.[2] Fato curioso é o de que este recurso de excelência civilizatória se dá junto a um órgão, ou a uma corporação, de franca maioria masculina, com apenas duas mulheres entre os onze juízes. 

A opinião das mulheres importa, pois, como virtualidade identitária, e não quando as mulheres reais se manifestam. É próprio do pensamento identitário rejeitar tais "incoerências". Se uma mulher é contrária ao prescrito como politicamente correto é porque ela não se percebe como tal, é manipulada e, no limite, não é... mulher. Assim a superioridade dos homens do STF se impõe contra as mulheres que não são conscientes de sua identidade.

No caso do aborto, a inconsciência identitária e o conservadorismo é, apontam os entusiastas pró-aborto, permeada pela religiosidade. E isto implicaria numa contradição para com o Estado laico. Além disso, afirma-se uma suposta cientificidade dos critérios do que seria uma “vida”, das “evidências sociológicas”, e, a partir deles, se denuncia o que seria a barbárie. Uma equação simplória que reduz os termos de uma questão filosófica e moral a uma oposição binária entre civilização e barbárie.

O pano de fundo do discurso “civilizatório”, “científico” e moralmente imperativo é uma rejeição às visões de mundo fortes – no caso francamente predominante – da população. Busca-se contornar o que se considera um inaceitável conservadorismo popular. Contornar o que, mal ou bem, se acha sedimentado no sistema representativo e, ainda mais, evitar que esta população de bárbaros se manifeste, por exemplo, em referendos.[3]

É interessante lembrar o referendo sobre o desarmamento, realizado em 2005, em que a proposta “civilizatória” foi amplamente derrotada (63%), e isso com pesquisas de opinião que apontavam no sentido inverso poucos meses antes. De fato, com uma mudança “conservadora” a partir das campanhas, do debate, sobre o tema.[4] Ali se reforçou o receio para com a opinião popular[5], que já existia e se aprofundou com o ascenso do voto conservador.[6]

Sem reduzir a importância da questão do aborto, ou das demandas de costumes em si – com variações, que vão desde a união homoafetiva à descriminalização das drogas, passando pela maioridade penal -, é extremamente preocupante a crescente desconfiança com relação à opinião popular. Não porque ela seja, em si, boa – aliás, como se “em si” as “civilizatórias” o sejam... quem decide? -, mas porque ela pressupõe a exclusão elitista destas percepções e experiências populares.

No país é reconhecido o papel das questões de costumes nas eleições recentes. Talvez até se perceba isso menos do que se deveria, se consideramos os níveis locais e regionais e, menos siderados pelo fetiche do Executivo[7], olharmos para os perfis legislativos. Fenômeno, aliás, mundial, um dos ingredientes do crescimento da “direita” em variados contextos nacionais.[8] Negar a opinião popular e evitá-la não tem sido eficaz. Talvez caiba perguntar se seria bom que o fosse.

De fato, este esquivamento com relação à opinião popular e ao debate público tende a fortalecer forças políticas que apostam na denúncia de uma suposta ditadura de minorias. Pior, excluir amplos setores populares como indignos de uma pedagogia política dialógica é ferir de morte o princípio de que qualquer mudança substancial precisa de que eles mesmos sejam protagonistas.[9] Mais do que do aborto, ou qualquer outra questão, trata-se de um paradigma de graves consequências.

Como uma das falsas polaridades que contaminam a vida política atual, quer-se opor o direito de propor inovações no campo dos costumes ao direito de defender usos e ideias do senso comum estabelecido. Não é esta a questão. Trata-se de refletir sobre o paradoxo de defender a democracia contornando o povo, de como aprofundar a democracia, radicalizá-la[10], estigmatizando este mesmo povo. A seguir assim, o aborto em curso é o da democracia. 

🅽

[1] No Brasil, só 16% apoiam aborto por desejo da mulher, diz pesquisa conduzida em 25 países. O Globo. 20.8.2020.

https://oglobo.globo.com/sociedade/no-brasil-so-16-apoiam-aborto-por-desejo-da-mulher-diz-pesquisa-conduzida-em-25-paises-24594610

[2] STF realizará audiência pública para debater ação do PSOL contra a criminalização do aborto.

https://psol50.org.br/stf-realizara-audiencia-publica-para-debater-acao-do-psol-contra-a-criminalizacao-do-aborto/

[3] Em diversos países a descriminalização do aborto foi feita com debate e referendos, como os catolicíssimos Portugal e Irlanda. Ver 'Sim' vence em referendo sobre legalização do aborto na Irlanda. Globo.com. 26.5.2018, e Aborto precisou de dois referendos e dez anos para ser despenalizado. Público.pt. 30.5.2018.

 [4] Em 2005, 63% dos brasileiros votam em referendo a favor do comércio de armas. Acervo O Globo. 15.10.2015.

https://acervo.oglobo.globo.com/em-destaque/em-2005-63-dos-brasileiros-votam-em-referendo-favor-do-comercio-de-armas-17786376

[5] O “casamento gay” jamais foi levado a voto, nem representativo, muito menos por referendo, sendo “legislado” pelo STF. Supremo Tribunal Federal reconhece união estável homoafetiva.
https://www.conjur.com.br/2011-mai-05/supremo-tribunal-federal-reconhece-uniao-estavel-homoafetiva.

[6] Ascenso ancorado em uma sólida presença conservadora no Legislativo, aliás.

[7] O que comentamos por aqui antes. Wlamir Silva. O fetiche das esquerdas pelas eleições dos executivos. São João del-Pueblo. 23.8.2016.

http://saojoaodel-pueblo.blogspot.com/2016/08/o-fetiche-das-esquerdas-pelas-eleicoes.html

[8] Iascha Mounk, aponta para o impacto do ativismo judiciário com relação ao aborto. Ver O povo contra a democracia: por que nossa liberdade corre perigo e como salvá-la. São Paulo: Cia. Das Letras, 2019, pp. 94 e 96.

[9] Os casos específicos como o da menina estuprada no Espírito Santo apenas alimentam, e reforçam, as posições dominantes, ao invés de um debate que considere a legitimidade social da população.

[10] O que quer dizer ir além das eleições, ou ainda revitalizar o sufrágio universal em perspectiva revolucionária.

Comentários