HOMEM VIVO CAMINHANDO II

 Wlamir Silva, professor e historiador

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A pesquisa de opinião feita em 11 a 12 de agosto pelo Datafolha confirma com folgas as impressões deixadas pela realizada pelo Instituto Paraná, que comentamos aqui há uns vinte dias.[1] Com maior exatidão, pelo fato de não se referir a uma disputa eleitoral virtual, mas confirmando a possibilidade daquela projeção.




Confirma-se a vacuidade dos “arroubos festivos ‘de esquerda’” e faz mais delirantes os “diagnósticos e prognósticos intelectuais” aos quais aqui anteriormente nos referimos. Definitivamente Bolsonaro não é um cadáver político, um homem morto caminhando no corredor da morte, repetindo a imagem por nós cunhada.

A incapacidade de análise política que engolfa ativistas e intelectuais situados “à esquerda” do espectro político é monumental. O divórcio com a realidade não pode mais ser camuflado pelo orgulhoso monopólio da moral, pelas “carteiradas acadêmicas” ou pelo espaço que estes ativos supostamente inquestionáveis possuem na mídia.

A resistência política de Bolsonaro é evidente. E ela se mostra quando há uma euforia de sua oposição – de “esquerda” ou liberal – a propósito da pandemia. Isso porque, a despeito de outros elementos, como o imbróglio Queiroz, a pandemia conteria elementos que produziriam uma síntese do que seria o “desgoverno” Bolsonaro.

Uma síntese de sua incompetência administrativa, mas cujo fecho seria poderosíssimo: o descaso para com as vidas humanas. Um “pingo de solda” que, esperava-se, tocaria os corações – muito secundariamente as mentes – dos brasileiros. Como seria insensível o povo diante de um “assassino”, de um “genocida”, de alguém frio diante de milhares de mortes?

As investigações sobre Flávio Bolsonaro, o suposto desbaratamento de uma rede de “fake news” que, no limite, aponta para uma suspeita de fraude eleitoral, a presumida ameaça às instituições e a razia do Supremo Tribunal Federal em aparente defesa das bases da democracia, encimadas pelo apelo sentimental do “genocídio”, não eram uma “bala de prata”, mas uma rajada delas sobre Bolsonaro.

Na mira da grande mídia e de um exército de intelectuais, com as reverberações nas redes sociais pelos seus epígonos, Bolsonaro estaria com os seus dias contados. O seu “fascismo” podia ser algo um tanto abstrato[2], os riscos à democracia algo fantasiosos, mas o apelo à morte seria, imaginavam, certeiro mesmo para o populacho ignorante. Ignorante, mas sentimental...

A repetição de palavras ou frases – “gripezinha”, “e daí”, “não sou coveiro” – fariam o que as “sofisticadas” análises sobre o “novo fascismo” não logravam. Para os bem pensantes a “sociologia”, a “historiografia”, até a “psicanálise”, para o povo ignorante um sensacionalismo lacrimogêneo “de esquerda”.[3] Ledo engano...

Precisamos nos repetir: “fica relativizada a importância da grande mídia e das redes sociais ‘universitárias’ no jogo político atual” e “a grande mídia é consumida pela população, mas não possui a credibilidade do julgamento político. O mais das críticas que atingem Bolsonaro não são reconhecidas pela população como um “privilégio” deste governante, e a suposta “ruptura civilizatória” não lhe diz respeito. [4]

E fica cada vez mais óbvio que o ataque sistemático é percebido como uma campanha orquestrada contra Bolsonaro por parte significativa da população. O apelo mórbido do “genocídio” em especial deve ser revisto. Afinal, se eficaz, seria devastador. Se não, como se vê indicado, é um índice de como a população percebe tal estratégia. O elemento sentimental pode ser reverso: como ousam fazer de mortes um estratagema político!

Há insatisfações da população com o governo, mas os índices, crescentes, – 64%, somando ótimo ou bom e regular – não autorizam o mote de “desgoverno”. As insatisfações, por sua vez, são medidas em comparação com a história recente, ou a memória recente, e relativizadas. Outrossim, medidas como a do auxílio emergencial – visto como motivo primordial por alguns – ou as ações sobre a pandemia, são também equacionadas por este viés.[5]

O mesmo se pode dizer da avaliação da atuação do governo com relação à pandemia. Ao contrário da simplória e binária oposição entre “abertura” e “isolamento”, a população é sensível às tensões e incertezas das escolhas feitas. Se manifestou uma defesa “ideal” do isolamento, não é insensível à tese de preservação da economia exposta por Bolsonaro. De fato, sobretudo os segmentos mais pobres, viveu mesmo certas incongruências do isolamento.

E com a decisão do STF de transferir aos estados e municípios as decisões sobre o isolamento, sua temporalidade e graus, parte da responsabilidade foi diluída. E com a “abertura” da economia, em ritmos variados, as diferenças foram diminuindo. E se o mote da oposição a Bolsonaro é o de que o isolamento social é “o” meio de combate à pandemia, a decisão do Tribunal diminuiu, sim, a responsabilidade do governo federal. De resto, a população é crítica, mas mede as ações dos governos por meio supracitado método comparativo.

Para além da miragem do “desgoverno” e das “balas de prata”, perde-se de vista o fundamental. Quer-se a todo custo tirar de Bolsonaro a legitimidade. E com isso se crê contornar o fato de que a sua eleição foi uma “derrota ideológica”, como, aqui e ali, alguns já apontaram. E isto implica em anestesiar o debate sobre a pauta vitoriosa do Liberalismo econômico e do conservadorismo dos costumes, além de ressaltar a falta de um projeto político consistente “em sentido contrário”.[6]

A realidade entrevista nas pesquisas de opinião não é difícil de perceber a olho nu. Dificulta esta percepção certa prepotência intelectual e a subordinação do senso crítico a objetivos políticos rudimentares. Abriu-se mão da observação objetiva da realidade pela “missão” de fazer Bolsonaro “desprezível”. Não o fizeram... E agora?



[1] Aprovação a Bolsonaro sobe e é a melhor desde o início do mandato, diz Datafolha. Folha de São Paulo, 13.8.2020.

https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/08/aprovacao-a-bolsonaro-sobe-e-e-a-melhor-desde-o-inicio-do-mandato-diz-datafolha.shtml
Wlamir Silva. Homem vivo caminhando. São João del Pueblo, 14.7.2020.

http://saojoaodel-pueblo.blogspot.com/2020/07/homem-vivo-caminhando.html

[2] Ou por demais forçado, para quem conhece história e não se dispõe a imolar tal conhecimento no altar das conveniências políticas.

[3] Com apoio decisivo da grande mídia “liberal”.

[4] E as tais pautas “civilizatórias” não são reconhecidas, da forma como apresentadas, como fundamentais para o grosso da população. Ver Wlamir Silva. Homem vivo caminhando. São João del Pueblo, 14.7.2020.

http://saojoaodel-pueblo.blogspot.com/2020/07/homem-vivo-caminhando.html

[5] Versões edulcoradas dos governos lulistas não possuem o impacto pretendido na memória popular.

[6] Aqui as aspas prestam uma melancólica homenagem à ideia surpreendentemente poderosa, inclusos os meios acadêmicos, que basta ser “o contrário”...


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