RONALD COLOMBO


Wlamir Silva
Professor e historiador

Em 1992, por ocasião dos 500 anos da descoberta da América, deu-se um debate entre as “teses” da Conquista e do Encontro, a primeira com ênfase na violência e na dominação, segunda no encontro entre culturas. Uma polêmica inglória, como se uma coisa negasse a outra.

Hoje, a polêmica se dá em torno da decapitação da estátua de Cristóvão Colombo, em Boston, nos EUA. Trata-se de um ato de “decolonização”. Não, eu não “comi” uma consoante. É isso mesmo, a ablação do “s” possui significado. É que não há mais horizonte de qualquer “descolonização”.

O “s” oculto, poderosíssimo, é o de “simbólico”. Decapitar Colombo é um ato simbólico, apenas. Neste âmbito, o que é extirpado é o “s” de substância. Porque Colombo e a sua descoberta são um marco do que é a América hoje, queiram ou não queiram os seus carrascos metafóricos. Não haverá uma nova América “indígena”, ou “africana”, os primeiros são residuais, e ambos integrados na sociedade capitalista e seus valores.

O ataque a Colombo é fruto de grupos organizados, isso não quer dizer que sejam socialmente significativos. E é quase cômico dizer que sua defesa interessa a imigrantes italianos. Tais ataques se originam numa concepção política multiculturalista e identitária. Concepção que guarda dois aspectos importantes a serem considerados: 1) a cisão da sociedade em grupos identitários, por “raça”, gênero, orientação sexual etc., 2) a reafirmação, de fato, da segregação originada da dominação de classe. Daí a confusão entre “raça” e “etnia”, dos sinais superficiais, fenotípicos ou culturais, com as formas de vida. O motivo é óbvio: vivemos “à capitalista”, os cabelos, vestimentas e gírias se misturam na vida do shopping. Se decapitam Colombo, poderiam pôr no lugar cabeça icônica de Ronald McDonald's.



Trata-se de uma perspectiva aprisionada pela lógica sócio-política que a gestou e que, de suas áreas mais dinâmicas, a comemora. Pois o ativismo identitário é o corolário da incapacidade de enfrentar as questões desta sociedade. É ele um sintoma da incapacidade de pensar um projeto político universalista, para o conjunto da sociedade. O grande capital corporativo comemora, deglute e regurgita como nichos de mercado, como se vê nas políticas empresariais e no entusiasmo na grande mídia. A condenação moral dos ícones do passado é facilmente absorvida por estas bases sociais e materiais da exacerbação simbólica pós-moderna.

E a razia contra monumentos históricos é uma manifestação clara disso. Pois ela nega a partir de sensibilidades identitárias a representação primária de nação. E não, não se trata de defender a nação nos moldes do século XIX. Mas muito menos se trata de uma nação etérea, composta pela soma de minorias e, por isso, isenta de conflitos. A nação será sempre problemática, conflituosa, mas não pode ser etérea. Etérea porque deslocada do real para um Olimpo simbólico. Etérea porque nega os fundamentos das desigualdades, sejam os mais profundos, sejam os mais imediatos. Etérea porque naturaliza a ordem social globalmente instituída e que absorve as demandas identitárias, mesmo de minorias econômicas, como observou Eric Hobsbawm.

As cidades não param de crescer. Há espaço para novos monumentos. Se quiserem seguir o modelo oitocentista podem propor novos deles, estátuas, bustos. Se alguns são insuportáveis, que se consulte a população para que se lhes retire. Duvido que massas trabalhadoras votassem por decapitar Colombo, ou lançar homens de bronze aos rios. Talvez nem comparecesse, porque os arroubos simbólicos não os interessam. Mas os entornos políticos destes valentes revolucionários contra o bronze inerte, como sabemos, estão cada vez mais frágeis. E não é algo a se lamentar.


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