COMO AS DEMOCRACIAS MORREM. UM COMENTÁRIO



Wlamir Silva
Professor e historiador


Postamos em redes sociais um trecho do livro Como as democracias morrem, dos cientistas políticos estadunidenses Steven Levitsky e Daniel Ziblatt[1] e um amigo perguntou se o livro era bom. O livro é interessante, respondemos. Há, no entanto, diversas críticas a serem feitas, da crença exagerada no establishment e das elites políticas partidárias, os guardiões da democracia, assim como uma identificação simplória de extremismos vários, Nazismo e Comunismo, por exemplo, são idênticos. 



Um dos incômodos com a tese da “morte da democracia” a partir da experiência estadunidense e que assombra o mundo é a da avaliação da presidência de Donald Trump. Pelo que vemos, amiúde, pela imprensa, as ameaças de Trump à democracia são pouco mais do que retórica. E não falamos aqui das propostas reacionárias de Trump, do meio-ambiente à imigração, e do que ele faz com os poderes presidenciais para efetivá-las, embora isso também seja bem restrito pelas instituições estadunidenses. O que Trump propõe é prerrogativa política. No que ele ameaça a própria democracia estadunidense?

Publicado em 2018, o livro trata do primeiro ano do governo Trump. Mas os seus desdobramentos em 2018 e 2019 não autorizam o vaticínio de que havia tempo e Trump poderá realizar seus “instintos autoritários”. De fato, os autores listam uma miríade de tentativas que não se realizam, ou porque tolhidas pelas instituições ou porque não passaram de retórica, ou “fake news”, e ainda com a ressalva de que “nenhuma mentira é óbvia demais”. As denúncias são muitas, vão da tentativa de controlar agências policiais a negar legitimidade a oponentes, e ainda casos localizados de violência supostamente inspirada pela retórica. Mas é também um inventário da incompletude dos intentos de ordem político-institucional.

Queremos aqui destacar um destes intentos de Donald Trump. Mas a escolha não é aleatória. São os autores que a classificam como “talvez a iniciativa mais antidemocrática já empreendida pela Administração Trump”. E do que tratava tal ameaça superlativa? Foi a criação da Comissão Presidencial de Aconselhamento sobre Integridade Eleitoral, cujos objetivos seriam aprovar “leis estritas de identificação do eleitor – exigindo, por exemplo, que os eleitores apresentassem uma carteira de motorista válida ou outra fotografia de identificação emitida pelo governo ao chegar à seção eleitoral”.[2]

Alega-se que a proposta partia da informação falsa sobre fraudes eleitorais. Mas, por que tal exigência seria tão brutalmente antidemocrática? Porque estima-se que “que 11% dos cidadãos americanos (21 milhões de eleitores qualificados) não possuem fotografias de identificação emitidas pelo governo e que, entre afroamericanos, essa proporção aumenta para 25%”, principalmente entre eleitores “de baixa renda”.[3] Tal lei não foi aprovada, juntando-se às demais, e as experiências em alguns estados apresentaram “efeito modesto” sobre o comparecimento eleitoral. Mas, por que a simples exigência de um documento oficial com foto seria tão importante?

Esta fresta diz algo sobre as preocupações democráticas em curso nos EUA. Os autores relacionam a exigência de documento com foto aos ardis das leis estaduais que praticamente eliminaram o voto dos negros desde as leis Jim Crow de fins do século XIX, mas isso faz sentido no século XXI? Afinal, se o establishment e o sistema americano, que repele extremismos, é a cidadela democrática a ser defendida, porque há este gueto social e “étnico” permanente? Em especial com as conquistas democráticas desde os Direitos Civis, passando por administrações democratas renovadas até dois mandatos de um presidente negro? Tudo isso sem autoritarismos. Isso diz muito sobre a ascensão de Trump, apesar de os autores a tratarem como um efeito da perda da capacidade de filtragem do próprio establishment.

Para os autores do Como as democracias morrem os problemas começaram com um excesso de democracia que deu muito espaço ao povo nas primárias, enfraquecendo a filtragem pelos guardiões da democracia, ou seja, a elite político partidária, e permitindo que um outsider como Trump furasse o bloqueio.[4] E como a democracia americana seria pobre de limites aos governantes o elemento fundamental é o da preservação de normas não escritas de tolerância e comedimento, o que seria impossível para um outsider como Donald Trump. Daí a importância de pôr em evidência a retórica e a imagem bizarras do presidente outsider. 

A preservação da democracia seria, pois, o resgate de certa tradição americana, com pitadas de assistência social por parte do Estado, com alguma novidade e universalidade – como uma renda mínima e o programa Medicare –, mas no mesmo escopo do que é feito sem sucesso há décadas, inclusive com o viés étnico e de minorias multicultural e identitário.[5] Trump não é fruto das incapacidades intrínsecas do sistema, mas de um cochilo de seus próprios fundamentos.

Jair Bolsonaro espelha-se em Donald Trump e dizem que também por aqui a democracia está em risco. Mas seria bom irmos além deste mimetismo. Afinal, o #NeverTrump precedeu o #EleNão, e não aprendemos nada com o seu fracasso.[6] Aqui, mais do que lá, o establishment não seduz. Também mais do que lá o mimetismo do multiculturalismo identitário tem pouco a dizer a um povo mestiço. E, mais ainda, nosso caminho de desenvolvimento ainda está por ser construído. É bom também que não nos amedrontemos com “excessos de democracia”, não estigmatizemos o povo como “deploráveis”[7] e tenhamos mais a dizer do que ordenar em quem as pessoas não podem votar.



[1] Steven Levitsky & Daniel Ziblatt. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar, 2018. 
[2] Idem, p. 175. 
[3] Idem, p. 176. 
[4] Idem, p.57. 
[5] Para uma crítica, no âmbito da esquerda estadunidense, ver LILLA, Mark. De esquerda, agora e sempre: para além das políticas identitárias. Lisboa: Tinta da China, 2018. 
[6] Steven Levitsky & Daniel Ziblatt, op. cit., p. 64. 
[7] Hillary diz que metade dos apoiadores de Trump é 'deplorável'. O Globo. 12/09/2016.


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