O ÓDIO AO SUFRÁGIO DO BRASILEIRO MÉDIO

Wlamir Silva
Professor e historiador


Corre pelas redes como fosse um portento de sociologia um texto que diz que "o brasileiro [médio] é preconceituoso, violento, analfabeto (nas letras, na política, na ciência... em quase tudo). É racista, machista, autoritário, interesseiro, moralista, cínico, fofoqueiro, desonesto".[1]




Este blog, ao gosto da "sociologia" elitista e antidemocrática...



Se pretende com isso negar "[a] imagem romantizada pela mídia e pelo imaginário popular, do brasileiro receptivo, criativo, solidário, divertido e 'malandro'". Crê-se fazer uma revelação sobre a "versão mais obscura e [...] mais realista" do brasileiro médio, do povo brasileiro.

O texto é sociologicamente um pastiche, um pastiche com grife acadêmica. Mas como documento não deixa de ser interessante. Afinal, quando dizemos que se costuma tachar o povo brasileiro de tudo isso, sempre alguém diz que não é ao povo que se está referindo ou que as pessoas se referem. Bem o texto faz o "favor" desta síntese. E o seu acolhimento e difusão dizem o resto. 

A inspiração para tal é evidente e confessada. Busca-se o porquê de um resultado eleitoral "nebuloso" em 2018... E aí começa a ruir o castelo de cartas - aquele baralhinho do jogo do mico - "sociológico". Se o povo é este monstro, o que há de nebuloso? É que não se precisa de muita sociologia para saber que o mesmo povo elegeu gente bem diferente nas últimas décadas... 

A pretensão sociológica que cheira a século XIX, ou aos anos 30 do século passado, de buscar explicação política no "caráter do povo" não dá conta do óbvio: ou o povo obscuro é o responsável pela eleição de gente tida por civilizadíssima ou ele mudou em metade de uma década. Aporia, aliás, completada em considerar que este tempo, ou uma eleição, ou 17 meses, bastou para a afirmação do "do lado mais nefasto, mais autoritário e mais inescrupuloso do sistema político brasileiro". 

Um brasileiro tão obscuro que destrói "avanços civilizatórios que o mundo viveu" e que "inevitavelmente chegaram ao país". Vejam bem, "chegaram", um povo tão terrível que só poderia mesmo ser cliente da civilização que vem de fora... E de lá é que vem leis e políticas de “combate ao racismo e ao machismo, [e] de criminalização do preconceito [...], diretrizes educacionais para escolas e universidades”. Contra “valores arraigados”. 

Mas não sejamos tão duros. Nem tudo vem de fora. Há nossas elites intelectuais. E ela pouco ou nada tem a ver com este povo desprezível. Estas elites educadas e sofisticadíssimas são, ao menos, a “antena da raça”, os que captam o belo e o justo, o civilizado, pois... E novamente é de se agradecer ao autor por demonstrar o que percebemos nas bolhinhas universitárias e intelectuais do país. 

Contra as leis que nos foram legadas pelos alienígenas – nesta sociologia a Erich von Däniken – e aprovadas pelos átimos civilizatórios de nossas elites políticas, nos parlamentos, inclusive, há um “imaginário da população, no cotidiano da vida privada, nas relações afetivas e nos ambientes de trabalho, nas redes sociais, nos grupos de whatsapp, nas piadas diárias”, que é uma barricada de preconceitos obscurantistas. Mal se pode esconder o desejo de um controle pelo Big Brother civilizado e civilizatório sobre esta massa incorrigível, quanto mais fundo no seu imaginário, melhor... Na falta de solução imediata para isto – por agora, Black Mirror bate à porta... – vamos com os velhos “instrumentos jurídicos e policiais”. 

Na classificação deste imaginário popular há a já conhecida tábula rasa do pensamento e da linguagem. Um viés simplificador das relações humanas e das formas de expressão. Simplificação que clama pela censura e a criminalização da liberdade de expressão e pela intervenção nas relações íntimas. Afinal é na esfera íntima que reside esta ontológica obscuridade! Isso, é importante que se diga, para além dos limites da violência expressos, há mais ou menos largo tempo, nas leis. Há os também já conhecidos binarismo e homogeneização sobre o que as pessoas pensam: ou se é isto ou aquilo, não há graus ou mediações, e há grupos – amplíssimos – supostamente monolíticos em posições que vão de sexualidade à percepção da pobreza, passando pela raça e o humor cotidiano. 

O elogio repressivo contido neste libelo contra o povo brasileiro é tão forte que um exemplo psicológico, psicanalítico, de um uma criança com desejos piromaníacos, é trazido à baila para defender a repressão por longo tempo.[2] Fala-se em anos, mas na analogia com sociedades ou um povo, seriam décadas ou, talvez, todo o sempre... Repressão para “uma forma socialmente aceitável”. E não somos aqui levianos. Toda sociedade tem elementos coercitivos, as sociedades modernas os possuem em códigos escritos e instrumentos policiais. Outra coisa é pensar nisso como o fundamento da ordem social, como o modus vivendi do “brasileiro médio”.[3]

E este “brasileiro médio”, “cidadão comum”, então, “se sente representado pelo Presidente”. E aí segue o já conhecido rol memético de impropriedades. Que vão de um para ele evidente linguajar preconceituoso, vulgar e violento, ao enaltecimento da ignorância e do senso comum; negação de problemas ambientais; percepção de cientistas como inúteis e contrários às crenças religiosas; e moralismo. Não apenas esta representação se daria por aceitação mas também, e basta, por não ser “tocado pela aversão, pela vergonha alheia ou pela rejeição do que vê”, pelo “show de horrores diário produzido pelo ‘mito’”. Na última frase há uma informação importante para o “raciocínio” rabiscado: se o índice é a eleição, todos os que não mostram “aversão” são responsáveis ou, melhor, culpados.[4]

Mas a sanha elitista e antidemocrática vai além. O problema é que

“[o] ‘brasileiro médio’ não entende patavinas do sistema democrático e de como ele funciona, da independência e autonomia entre os poderes, da necessidade de isonomia do judiciário, da importância dos partidos políticos e do debate de ideias e projetos que é responsabilidade do Congresso Nacional. É essa ignorância política que lhe faz ter orgasmos quando o Presidente incentiva ataques ao Parlamento e ao STF, instâncias vistas pelo ‘cidadão comum’ como lentas, burocráticas, corrompidas e desnecessárias. Destruí-las, portanto, em sua visão, não é ameaçar todo o sistema democrático, mas condição necessária para fazê-lo funcionar”.

Um desabafo autoritário de proporções sesquipedais. Novamente é de saudar que o escriba venha a público explicitar o não dito, mas sussurrado, nas bolhas “bem pensantes”. Arroubo que não poderia deixar de estender a impropriedade do voto à das manifestações das ruas! Diz o Mussolini sociológico: “Esse brasileiro não vai pra rua para defender um governante lunático e medíocre; ele vai gritar para que sua própria mediocridade seja reconhecida e valorizada, e para sentir-se acolhido por outros lunáticos e medíocres que formam um exército de fantoches cuja força dá sustentação ao governo que o representa”. Que a repressão se faça aí também, se diz nas entrelinhas!

Liliputianos tratando de aproveitar-se do sonho de um novo Gulliver e Pânico dos lliputianos que trataram de garrotear ao sufrágio universal durante o sonho. Litografias de Honoré Daumier (1808-1879) de meados do século XIX na França. O Sufrágio Universal como um incômodo. Pierre Rosanvallon, La consagración del ciudadano. Historia del sufragio universal. México: Instituto Mora, 1999.


O bestialógico é interminável. Dá certo asco desfiá-lo. Como se dá a “experiência” como parâmetro – as tais pesquisas citadas não aparecem – devemos dizer que nossa percepção do povo brasileiro é inversa. Ele é, no mais, tolerante, amistoso, solidário e bem-humorado. O que é ali ignorada é a realidade histórica como totalidade. O que inclui as condições sociais e econômicas nas quais se encontra imerso este povo. A culpa é mau conceito para pensar a política e o destino dos povos. Mas se há alguma ali é a de que, em linhas muito gerais, as sociedades produzem o Estado. Mas nesta perspectiva é mesmo desonesto, e primário em termos analíticos, pôr a culpa no “brasileiro médio”, no “povo”.

Quer-se apagar o fato da impaciência e descrédito popular para com “governos platônicos” que não desenvolveram a economia e não a tornaram tecnológica, não avançaram em saneamento urbano e em educação básica, e para com o sistema político ineficaz e corrupto. Espera-se que o “populacho” seja reativo ao linguajar chulo e à quebra de protocolos formais litúrgicos que este mesmo povo sabe que permeava as piores sujeiras. Exige-se que este povo abra mão de sua cultura popular, de seus padrões culturais, ao sabor de cartilhas impostas por alienígenas presunçosos donos da linguagem “politicamente correta” e de metafísicas identitárias.

Mas o cerne do problema é o mal-estar, o inconformismo, com um resultado político! E aí temos um velho e renovado paradoxo: o sufrágio universal. Mais do que isso, o sufrágio secreto. Sim, porque se este povo manifesta em urnas ideias que escondem é o segredo do voto que permite este quadro inaceitável! E é mais, ter o povo como ontologicamente ignóbil é confessar que não se pode convencê-lo. É negar qualquer pedagogia política. Nenhuma ideia ou padrão cultural é sagrado, ou imutável. Mas o brasileiro médio, comum, o povo, não está disposto a que lhe digam em quem pode ou não votar, ou a quem deve odiar. Esta, e não o caráter do povo, é a verdade que se mostra em eleições e pesquisas de opinião.




[1] Ivann Lago. O Jair que há em nós. https://ivannlago.blogspot.com/2020/02/o-jair-que-ha-em-nos.html. Não é à toa que o texto tenha sido replicado pela revista Carta Capital, que em fins de 2016, por ocasião das eleições municipais, já fazia um ataque contra o povo incapaz, bem antes de Bolsonaro...
[2] Tem sido comum o uso da psicanálise como meio de análise política. O que permite que pulsões e culpa sejam utilizados como meios de desqualificar o debate público, com graves implicações.
[3] Há neste “brasileiro médio” um subterfúgio retórico. Pode-se mover o que ele seria de acordo com as conveniências. Fica a evidência de que ele é identificado com o “povo”.
[4] Em termos posteriores à eleição, na pesquisa de opinião de 7 de abril que dá a Bolsonaro 33% de bom e ótimo, e 59% de não rejeição, com os que o consideram "regular", certamente a “não aversão” atinge 60% da população.

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