A PEREGRINAÇÃO PELO GRAAL: A HISTÓRIA POR TRAUMA E A AMEAÇA AOS COMUNISTAS

Wlamir Silva
Professor e historiador

No calor da polêmica do da citação de referências ao Nazismo por um membro do governo federal na semana que passou[1], vem à baila uma suposta igualdade, ou identidade mesmo, sob o signo do “totalitarismo”, entre o referido Nazismo e o Comunismo. E é bom lembrar que em alguns países os símbolos do Comunismo são proibidos, a par dos do Nazismo, como a Lituânia e a Geórgia. Na Polônia e na Ucrânia o Comunismo como ideologia política se tornou proibido.

Sobre arte do Instituto Misses Brasil
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A proibição dos símbolos nazistas se origina na culpa alemã e se expandiu pelo mundo, até chegar ao Brasil, por causa da extrema violência do regime nazista e, sobretudo, do Holocausto. O Holocausto foi um fenômeno único, porque foi o extermínio deliberado de milhões de membros identificados com uma religião étnica, um extermínio metódico organizado pelo Estado. E um Estado que chegou a se pautar pelo genocídio atingiu níveis de violência e sadismo – que se mostra pelas experiências com humanos, por Joseph Mengele – inigualáveis.

A história humana é prenhe de violência, desde a Antiguidade e incluindo as sociedades tradicionais, e esta violência se intensificou conforme a complexificação econômica e política das sociedades modernas. No século XX esta intensificação atingiu o paroxismo, com a evolução tecnológica, a urbanização, a sociedade de massas e a sofisticação dos meios burocráticos e bélicos. Os grandes processos revolucionários e as expansões destes Estados foram violentos. Das revoluções burguesas às socialistas, da expansão estadunidense na América à construção da União Soviética e de suas áreas de influência[2]. Em nenhum dos casos houve um projeto de extermínio étnico como o nazista ou os citados extremos de violência sistemática.

As concepções teóricas da História, e suas concepções na sociedade, foram influenciadas por um profundo relativismo nas últimas quatro décadas, com variações espaciais. Este relativismo emasculou, sobretudo, as análises dos grandes processos como os que envolvem Capitalismo, Comunismo e Nazismo. O Holocausto, e o “negacionismo” do fato, no entanto, criou um paradoxo na historiografia relativista. O fenômeno incomodava a postura irracionalista de que não havia em História verdades, e para a qual os processos históricos eram opacos, turvados quase totalmente pela linguagem, pelo discurso, ou mesmo que nada havia além deles.

Tal incômodo fez com que se criasse uma justificativa ad hoc para o Holocausto: a verdade é admitida, canonizada mesmo, no que tange a fenômenos marcados por profundos “traumas”[3]. Ao contrário, então, do princípio de que não se poderia estar fora da História e do tempo, num ponto elevado[4] para emitir juízos, admitiu-se uma verdade que se impõe explicitamente de fora, de ordem moral. De tal forma que um historiador campeão em reduzir a história aos topos do discurso se via “pisando em ovos”, diante do tema, admitindo ali uma escrita intransitiva[5]. Tal paradoxo criou uma exceção que continuou a contornar análises globais e foi estendida a outros temas “traumáticos”, como o da relação entre colonizadores e indígenas, a escravidão e as ditaduras.

Eliminadas as “grandes narrativas”, em especial a do Materialismo Histórico e Dialético, e com elas os concernentes projetos de sociedade, os “traumas” se tornam para os pós-modernos relativistas uma tábua de salvação para a orientação política. Mas, perdido o horizonte da transformação global, eles migraram para demandas identitárias e de supostas “dívidas históricas”. Os processos revolucionários socialistas do século XX são excluídos de uma perspectiva crítica, negados ou incensados como simbolismos inócuos, ou igualados em tábula rasa ao Nazismo, por meio da teoria do Totalitarismo. Teoria que não trata das contradições envolvidas naqueles processos e tende a ignorar a evidente peculiaridade do Nazismo[6].

Mas, como o “trauma” é o santo Graal pós-moderno, é preciso localizá-lo e fazer dele a pedra angular de posições políticas tidas, sempre a priori, sempre “de fora da História”, como moralmente superiores. Parte desta busca se dirige às demandas identitárias, cujos clientes são quase sacralizados. Outra parte à busca obsessiva do trauma totalitário, do Fascismo e do Nazismo. Fenômenos tidos por “populistas” são assim tachados, e quaisquer laivos de semelhança são anunciados como a emergência do fenômeno, mesmo que seus elementos reais sejam comuns a diversos Estados, semelhantes até a governos recentes.

Recentemente este fenômeno se mostrou em nosso país. Há uma década políticos liberais são classificados de fascistas[7]. Por ocasião do impeachment de Dilma Rousseff, o epíteto de fascistas foi generalizado[8]. Na ocasião, a própria Dilma Rousseff aludiu ao Nazismo[9], um acadêmico confirmava a tese[10]. Com a eleição de Jair Bolsonaro as alusões ao Fascismo cresceram nas redes sociais e nas universidades[11]. Nas últimas semanas alardeou-se o retorno do Integralismo – o Fascismo brasileiro – e agora, por ocasião de um discurso do secretário de Cultura – já exonerado – citando não explicitamente Goebells, retornou com força a ideia de que se desenha no país um Nazismo. Como se vê, não foi o episódio do ataque com bombas caseiras por um desqualificado ou um secretário de Cultura que detonou a catástrofe. Não foi nem mesmo Bolsonaro, a peregrinação pelo Graal é diuturna.


A esquerda que não perdeu o horizonte da transformação global, a perspectiva socialista, foi tragada pela hegemonia pós-moderna. As experiências socialistas passaram a ser referências simbólicas e festivas, mas cada vez menos objeto de crítica. E seu foco se deslocou para as citadas demandas identitárias, tidas fantasiosamente como antissistêmicas, em contradição com a ordem do capital. Esta esquerda é incapaz de pôr em perspectiva crítica os contenciosos históricos das experiências socialistas, e é presa fácil das armadilhas pós-modernas e da ordem estabelecida. Até porque estas não possuem contradição importante entre si. Perdida, se debate entre a incompreensão do fenômeno chinês e os pastiches como o “Socialismo do século XXI” venezuelano. Caem também no canto da sereia do Graal nazista, na vaidade de ser, ou parecer, antifascista, antinazista...

O episódio da semana, o discurso do secretário de Cultura, foi utilizado como marco do encontro do Graal. Estaria ali a evidência de que o governo é nazista. Mas as exegeses do discurso quase copiado esbarraram num problema: os termos do discurso podem significar um dirigismo cultural, uma utopia de fusão entre povo e nação num páthos nacionalista e algo autoritária. Mas nada disso é exclusividade do Nazismo, nem mesmo de Estados autoritários. Esteve presente de alguma forma no Destino Manifesto e no American way of life estadunidense, abraçados até pela indústria cultural. À esquerda, é vista no discurso patriótico soviético e no dirigismo jdanovista[12], ou no Pátria ou morte cubano...

Perde-se mais uma vez a peculiaridade nazista, o que faz do Nazismo inaceitável. Um Nazismo que não se da violência institucionalizada, da censura e perseguição a artistas e intelectuais, da queima de livros e da campanha contra a “arte degenerada”, do antissemitismo como política de Estado e, com grande destaque, do extermínio, da solução final. Dirigismos, coerções e cooptações podem ser um pouco maiores, questão de grau, mas nada faz do governo atual algo que se possa comparar ao Fascismo e, muito menos, ao Nazismo... Além da inexistência de formas organizativas de massas e paramilitares, que alçaram o Fascismo onde ele existiu, inclusa a nossa experiência integralista.

Ao festejar o falso Graal, os peregrinos abrem a porta para que se igualem experiências sociais e políticas bastante diversas. No jogo político atual, que se identifique o Comunismo ao Nazismo, por meio do conceito limitado de Totalitarismo. Para que se avente proibir o Comunismo como ideologia e mesmo a proibição de seus símbolos[13]. Uma tragédia na conta dos pós-modernos e de sua corte de iludidos. Acham-se muito radicais, combativos, são peões num jogo que não entendem. Com implicações para os comunistas e para a vida democrática brasileira.



[1] Em vídeo, Alvim copia Goebbels e provoca onda de repúdio nas redes sociais. Folha de São Paulo. 17.1.2020.
https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2020/01/em-video-alvim-cita-goebbels-e-provoca-onda-de-repudio-nas-redes-sociais.shtml
[2] Para uma abordagem dialética de tais processos, ver LOSURDO, Domenico. A luta de classes: uma história política e filosófica. São Paulo: Boitempo, 2015. Fazer inventários interessados de violência deve considerar processos vários. Um exercício interessante, com olhar atento e crítico, é cotejar PERRAULT, Gilles. O Livro Negro do Capitalismo. Rio de Janeiro: Editara Record, 2005, com COURTOIS, S. e outros. O livro negro do comunismo. Crimes, terror e repressão. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.
[3] Ver LACAPRA, Dominick, “Escribir la historia, escribir el trauma”, Buenos Aires, Nueva
Visión, 2005.
[4] Ver ANKERSMITH, Frank. A escrita da história. ANKERSMIT, Frank Rudolf. A Escrita da História: a natureza da representação histórica. Londrina:
EdUEL, 2012.
[5] FALCON, Francisco J. Calazans. História e representação. In: CARDOSO, Ciro Flamarion e MALERBA, Jurandir (orgs.). Representações. Contribuições a um debate transdisciplinar. Campinas: Papirus, 2000,  p. 67.
[6] Para uma crítica da categoria de Totalitarismo, ver LOSURDO, Domenico. Para uma crítica da categoria de totalitarismo. Crítica Marxista, n. 17, p. 51-79, 2006.
https://www.ifch.unicamp.br/criticamarxista/arquivos_biblioteca/critica17-A-losurdo.pdf
[7] Ver Serra assume agenda do fascismo social que ameaça Europa. Carta Maior. 20/10/2010.
https://www.cartamaior.com.br/?%2FEditoria%2FPolitica%2FSerra-assume-agenda-do-fascismo-social-que-ameaca-Europa%2F4%2F16188&fbclid=IwAR2qoiQhugM6FQl6eMojk88hgHQ4JDRCXfg3U3GDGWxYioQkkLAiIncOV6s
[8] Ver Esquerda unida para vencer golpistas e fascistas e construir o projeto político da classe trabalhadora. CUT.
https://www.cut.org.br/artigos/esquerda-unida-para-vencer-golpistas-e-fascistas-e-construir-o-projeto-politico-8fae
[9] Ver Dilma compara intolerância vivida no Brasil com o nazismo. O Globo. 31/03/2016.
https://oglobo.globo.com/brasil/dilma-compara-intolerancia-vivida-no-brasil-com-nazismo-18990946
[10] Ver Para professor da Unicamp, já vivemos Estado de Exceção semelhante ao nazismo. Fórum. 19.7.2016.
https://revistaforum.com.br/noticias/para-professor-da-unicamp-ja-vivemos-estado-de-excecao-semelhante-ao-nazismo/
[11] https://twitter.com/haddad_fernando/status/1155446765941743616
[12] Detalhe percebido por Merval Pereira, incluindo um dirigismo intentado pelo governo Lula. Merval Pereira. Sai Jdanov, entra Goebbels. O Globo. 18.01.2020.
https://blogs.oglobo.globo.com/merval-pereira/post/sai-jdanov-entra-goebbels.html
[13] Ver, a exemplo, já em 2018 Por que a foice e o martelo comunistas devem ser tratados como a suástica nazista. Gazeta do Povo. 5.11.2018.
https://www.gazetadopovo.com.br/ideias/por-que-a-foice-e-o-martelo-comunistas-devem-ser-tratados-como-a-suastica-nazista-a84ibjlqe9ash00x8ecp9de4s/?utm_source=facebook&utm_medium=midia-social&utm_campaign=gazeta-do-povo&fbclid=IwAR3eB4a8umqeI6nJqU2nk0yllUpdrIQQwwHRZ8nPittmxvdAPp6gmqOXKDg


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