ENCARAR A DERROTA IDEOLÓGICA PRIVATIZANTE


Wlamir Silva
Professor e historiador

O papel do Estado como indutor do desenvolvimento econômico é importante para o Brasil. Seu equacionamento não é óbvio, nem pode ser a reedição do, parcialmente exitoso, varguismo[1]. Afinal, a globalização – com seus diversos aspectos, financeira, tecnológica, informática – complicou muito o quadro. Mas a necessidade permanece, em outros termos, que ainda precisam de elaboração e debate junto à sociedade.

Ao contrário da lenda que vendem – com interesses políticos suspeitos de diversos matizes –, o atual governo não vai cair e não é estagnado. A aprovação da reforma da Previdência e o encaminhamento da congênere tributária são provas disso. A despeito das trapalhadas do presidente e pimpolhos, dos problemas intrínsecos à realidade brasileira e das duras cargas da grande mídia, o governo funciona. E um ambicioso plano de privatizações se anuncia, no mesmo cenário que zomba da lenda catastrofista que enleva os tolos.

O que se quer esquecer ou abstrair é que a vitória eleitoral do atual presidente e, de forma mais difusa, do Parlamento, representa uma inflexão ideológica. E a tese de que o resultado eleitoral foi fruto de uma farsa é uma, consciente ou inconsciente, negação quase freudiana de uma derrota ideológica. E parte desta derrota é a afirmação de uma perspectiva (neo)liberal privatista. Perspectiva que, também de forma difusa, foi exposta em campanha e, como sabemos, tem simpatias até em nossas periferias.[2]

Parte da derrota ideológica advém dos governos Lula e Dilma, pela forma de gestão das estatais, inclusos os esquemas de corrupção, cuja negação de viés freudiano é também parte da debacle. A maior parte, no entanto, se deve à evidente inércia de tais governos no que tange às bases do desenvolvimento econômico supracitadas. Estrutura, saneamento, educação básica, política industrial, tecnologia aplicada, nível e qualidade salariais, contas públicas etc., não tiveram sequer novos caminhos esboçados, e isso num auspicioso boom de commodities. Neste vazio prosperou a proposta liberal.[3]


Há espaços para lutar pela preservação da capacidade indutora do Estado, preservar as “joias da coroa”, como a Petrobrás e os bancos públicos. E é bom lembrar que parte significativa do estatismo anterior se fez com a multiplicação de subsidiárias não essenciais, ou mesmo dispensáveis, inclusive como cabide de empregos. O ícone deste “estatismo” foi a Empresa de Planejamento e Logística S.A., criada em 2011, com o objetivo de desenvolver o trem-bala, do qual, como se sabe, não houve notícia, ao custo de milhões.[4] Outrossim, a confusão entre venda de commodities – e aí concessão ou partilha é secundário – e privatização das estruturas empresariais, alimentada de forma contraditória e casuística, em nada contribuiu para o debate.

Os espaços a serem buscados estão no governo, em especial nos setores militares, no Parlamento e na mobilização de um imaginário popular anda vivo, uma percepção quase instintiva, da necessidade para o desenvolvimento. Num espectro ideológico variado, como, aliás, sempre foi o do nosso nacionalismo. Mas tal horizonte exige uma oposição que, ao que parece, não temos. Uma oposição mais interessada em preservar tais potencialidades e, consciente da derrota ideológica, capaz de mostrar aos agentes dos espaços citados uma grandeza que não soe como mera estratégia eleitoral.

Para isso, é preciso usar tais espaços com mais civilidade e argumentos, e menos demagogia eleitoral precoce. Desistir ou repelir a subordinação do tema aos interesses de grupos específicos, ou à confecção de discursos “radicais” com vistas a campanhas futuras. É preciso reconhecer os problemas da ação do Estado e primar pela democratização de sua ação pelo desenvolvimento. Reconhecer os termos da derrota ideológica e empenhar-se em revertê-la.




[1] É bom lembrar que Vargas não era nem assim tão estatista, e que não pretendia o monopólio integral da Petrobrás nem repelia o capital privado, nacional ou estrangeiro.
[2] Em paralelo, a ausência do enfrentamento das questões de fundo do desenvolvimento nacional deu vasa a uma estranha centralidade de uma pauta de costumes e identitária que facilitou o ascenso do amalgama liberal/conservador. Sobre o "Liberalismo popular", ver

https://fpabramo.org.br/publicacoes/wp-content/uploads/sites/5/2017/05/Pesquisa-Periferia-FPA-040420172.pdf

https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2018/09/metade-dos-eleitores-prefere-ser-autonomo-a-ter-emprego-clt-diz-datafolha.shtml

https://oglobo.globo.com/opiniao/das-urnas-povo-empreendedor-23236267

[3]
Não citamos aqui a “era” FHC, afinal, à época o discurso era (neo)liberal, assim, seu fracasso no enfrentamento das questões citadas ficou “na conta” do Liberalismo. É bom lembrar, aliás, que, a despeito do discurso contra a tal “privataria”, na “era” Lula nada foi feito para reverter uma vírgula do que fez o governo anterior.
[4]  Ver https://www.valor.com.br/brasil/5536257/criada-para-fazer-trem-bala-epl-e-mantida-dando-prejuizos

Comentários

Na verdade as pesquisas indicam que a maioria da população defende medidas estatizantes. Dentro do Pt, sim, o liberalismo venceu a luta ideológica, desde a década de 1980.
Uma pesquisa divulgada pelo Datafolha em 5 de janeiro de 2019 mostra que o brasileiro rejeita privatização. Apesar da vitória de liberais, 60% são contra vender estatais, e 57%, contra redução da CLT. As eleições de 2018 consagraram políticos que se diziam comprometidos com princípios liberais na economia, mas dois itens usualmente associados a esse ideário, privatizações e redução das leis trabalhistas, são rejeitadas pela maioria dos brasileiros: 60% e 57% dos ouvidos pela pesquisa sobre as práticas, respectivamente, discordam delas.

Outra pesquisa divulgada em 10 de novembro de 2019 mostra que a maioria segue contra privatizações. Embora tenha aumentado ligeiramente a parcela da população favorável à venda de empresas estatais, dois em cada três brasileiros (67%) se opõem às privatizações. Uma parcela de 25% é a favor da venda dessas empresas, e 2% são indiferentes, além de 6% que não opinaram. Em dezembro de 2017, em consulta sobre o tema, 70% se opunham à venda de empresas do governo para empresas particulares, e 20% se mostravam favoráveis.
Uma das operações teóricas e políticas mais bem-sucedidas do neoliberalismo foi instaurar os debates em torno da oposição entre estatal e privado. Deslocar o debate para esse eixo impõe um campo duplamente favorável ao liberalismo, porque, por um lado, permite uma mais fácil desqualificação do estatal e, por outro, desloca um dos termos essenciais do debate: o público.

O estatal é caracterizado nesse esquema como ineficiente, aquele que cobra impostos e devolve maus serviços à população, como burocrático, corrupto, opressor. E o privado é promovido como espaço de liberdade individual, de criação, imaginação, dinamismo.

Porém a oposição estatal/privado reduz o debate a dois termos que, na realidade, não são necessariamente contraditórios, porque o estatal não é um pólo, mas um campo de disputa, que nos nossos tempos é hegemonizado pelos interesses privados. Já o privado não é a esfera dos indivíduos, mas dos interesses mercantis - a verdadeira cara por trás da esfera privada no neoliberalismo.

O pólo oposto ao estatal, nesse esquema, é a negação da cidadania, é o reino do mercado, aquele que, negando os direitos, nega a cidadania e o indivíduo como sujeito de direitos. A polarização essencial não se dá entre o estatal e o privado, mas entre o público e o mercantil. Dentro do próprio Estado se desenvolve o conflito e a luta entre os que defendem os interesses públicos e os mercantis, entre o que Pierre Bourdieu chamou de braços esquerdo e direito do Estado.

O público se fundamenta nos cidadãos, nos indivíduos como sujeitos de direitos, enquanto o mercado congrega aos componentes do mercado os consumidores, os investidores. O primeiro tem na sua essência a universalização de direitos, o segundo, a mercantilização do acesso ao que deveriam ser direitos: educação, saúde, habitação, saneamento básico, lazer, cultura. O público se identifica com a democracia, seja pelo compromisso com a universalização dos direitos, seja pela possibilidade de controle pela cidadania, enquanto, ao se mercantilizarem esferas da sociedade, privatizando-as, retira-se da cidadania a capacidade de controle sobre elas.

A construção de uma democracia substantiva (uma outra forma de falar da superação do neoliberalismo) no Brasil requer uma reforma profunda do Estado brasileiro, refundando-o em torno da esfera pública. Mas, antes de tudo, requer a reposição do conjunto dos debates políticos e teóricos em torno da polarização público/mercantil.

A saída do modelo neoliberal não depende só de novas políticas econômicas, mas de se assumir a centralidade do público e a luta contra a mercantilização. Mudança implica mudança econômica, política, social, cultural, mas também mudança do campo teórico de análise e de referência.