A ÁRVORE ENVENENADA


Wlamir Silva
Professor e historiador


Da leitura dos artigos do Intercept adiantamos logo o principal. São poucas, picotadas e inconclusivas as frases que que sugerem “instruções” dadas por Sérgio Moro aos procuradores do Ministério público. O que dá espaço ao questionamento de ruptura institucional por ser vedada pelo Código Penal a instrução de uma das partes por juízes. Uma frase atribuída a Sérgio Moro, dirigida ao procurador Deltan Dallagnol foi esta: "Definitivamente, as críticas à exposição de vcs são desproporcionais. Siga firme". O que, e não somos "jurista", não nos parece instrução, no máximo um afago, um estímulo ao trabalho...

Outras frases parecem-nos, como leigo, podem ser interpretadas como sugestões de diligência processual, como “[t]alvez fosse o caso de inverter a ordem da duas [fases da investigação] planejadas”, ou “[n]ão é muito tempo sem operação? [...] [n]ão pode cometer esse tipo de erro agora”. Não sabemos se sugerir uma testemunha – “[a]parentemente a pessoa estaria disposta a prestar a informação. Estou então repassando. A fonte é séria” – é, e aqui fala o Intercept, prova de que o juiz “sugeriu, indicando um caminho para a investigação”? O plural do “[d]everíamos rebater oficialmente?”, com relação “a ataques do Partido dos Trabalhadores contra a Lava Jato”, conforme o Intercept, nos parece por demais genérico.

Também nos parece forçado que diligências de celeridade na apreciação de uma prisão e a pergunta do juiz sobre a pertinência – “[c]aro, STF soltou Alexandrino. Estamos com outra denúncia a ponto de sair, e pediremos prisão com base em fundamentos adicionais na cota. […] Seria possível apreciar hoje?”, teria dito Dallagnol, “[n]ão creio que conseguiria ver hj. Mas pensem bem se é uma boa ideia”, teria alertado Moro, concluindo que para a manutenção da prisão “[t]eriam que ser fatos graves”. Nossa pouquíssima e indireta observação de demandas a juízes sempre percebeu que a demanda por liminares, prisões e solturas – e a consequente troca de conveniências para tanto – envolveu diálogo entre as partes... A conclusão do Intercept sobre estes diálogos, então, é surreal e merece a longa transcrição:

“Depois de ouvir a sugestão, Dallagnol repassou a mensagem de Moro para o grupo de colegas de força-tarefa. ‘Falei com russo’, anunciou, usando o apelido do juiz entre os procuradores. Em seguida, os investigadores da Lava Jato passaram a discutir estratégias para reverter a decisão, mas Alencar não seria preso novamente, numa demonstração clara de que os diálogos entre Moro e Dallagnol influenciaram diretamente os desdobramentos da operação”.

Da análise do Intercept se depreende que as estratégias de reversão eram falsas e, pior, se Moro tivesse acatado o pedido dos procuradores seria um conluio, como não o fez, é conluio também! É bom dizer que todas as falas atribuídas a Sérgio Moro e relativas à dita instrução foram citadas nos parágrafos anteriores. Elas sustentam a interpretação de instruções do juiz aos procuradores, de um conluio, de um acerto entre partes? Temos dúvidas. Mas não estamos sós. Os defensores políticos da tese também as tiveram. Tanto que entenderam que era preciso fortalecer o caso. E o fizeram como sempre: inventando! Era preciso dizer que a sentença fora combinada!

E já no mesmo dia da matéria do Intercept circularam “fake news” inventando diálogos e, por diversas formas, alardeando uma farsa judiciária cujas bases não são tão evidentes. Fato grave por dois motivos: 1) a farsa de declarações atribuídas foi largamente difundida por gente que, de duas uma, não leu ou não tem escrúpulos em divulgar enganos, mentiras, fake news; 2) a suposta instrução de Sérgio Moro - citando-se o Código Penal - que abre espaço para que se sugira a ilegalidade formal do processo contra Lula, mas também de mais uma centena de condenados pela Lava-Jato...


Outras questões apontadas pelo Intercept são secundárias. A acusação de que procuradores faziam alusões políticas em mensagens privadas apenas arranham o lema de não ser partidário ou ideológico usado, sobretudo por Dallagnol. Um arranhão político, não jurídico. É curioso que se levante para isso as articulações para impedir a entrevista de Lula, às vésperas do segundo turno das eleições. Em parte, com expressões soltas - abstraídas - como "ela 'pode eleger o Haddad' ou permitir a 'volta do PT' ao poder. Até porque é plausível uma indignação com o uso político da entrevista de um preso condenado, além de não ser ingênua a liberação por Lewandowski... Uma indignação - da qual compartilhamos - com o “fazer palanque na cadeia” ...

Não há declaração contundente e específica de "que o objetivo principal era impedir o retorno do PT à presidência", sendo esta uma conclusão do Intercept. O que é diferente de, em âmbito privado, os envolvidos se manifestem preocupados com a volta do PT. Como teria dito Dallagnol: "precisamos como país”. Outra indução ao erro que correu pelas redes foi uma filiação de procuradores ao Partido Novo. Quando o que ocorre é um regozijo com o recurso do referido partido contra a entrevista de Lula, nas mais que isso. um dos procuradores é irônico, não "taxativo", como diz o Intercept: "Devemos agradecer à nossa PGR: Partido Novo!!!”. Irônico, pois vê o Novo fazendo o papel devido à PGR...

A partir da hipérbole das dúvidas de Dallagnol e de uma leitura ingênua de estratégias de acusação, o Intercept requenta a discussão do triplex com tecnicalidades. Ignorando a confirmação da sentença de Moro por mais duas instâncias e diversos juízes, incluso o Supremo Tribunal Federal em grau de recurso, e o conjunto de provas sobre as obras peculiares e seus pagadores... E quando trata do processo contra Lula, quase nada as revelações atuais têm a acrescentar. A sentença sobre “uma acusação sem provas, [que] ele [Dallagnol] mesmo admitiu", não se sustenta, é mera ilação do Intercept. Além do que, é bom destacar, se sugere que o Judiciário como um todo seria agente do dito conluio.

O Intercept promete mais de 1600 documentos, uma novela interminável. Documentos entregues por uma "fonte anônima". Há aí três questões: 1) isso vai ser utilizado como um dossiê homeopático?; 2) vai ser editado como agora?; 3) se obtidas ilegalmente - e como não o seriam? - que valor tem do ponto de vista legal? Outra questão diz respeito às esperanças jurídicas de tal iniciativa, quase certamente vãs. A primeira ao uso político da imprensa e a segunda à forma de fazê-lo, sem dar à sociedade o acesso ao conjunto da obra, mesmo que retirando, justamente, a vida privada. O Intercept diz que “os documentos falam por si”, o que faz arrepiar um historiador. Mas o jornalismo das fontes picotadas e soltas – aliás, à maneira de Snowden e Assange –, e que pretende naturalizar a análise particular, também deixa a desejar...

Conhecemos por conta do caso a Teoria da árvore envenenada, que preconiza que toda prova obtida por meios ilícitos estará contaminada para fins legais. Não é surpresa que ela seja evocada para sugerir tanto a ilegalidade da sentença de Lula quanto para pôr a salvo Sérgio Moro e os procuradores. Direito é assim. Mas nos vem à mente uma terceira – não jurídica e heterodoxa – teoria da árvore envenenada.

Nunca atribuímos heroísmos à Moro ou aos procuradores agora sob fogo. Seria mesmo de uma grande ingenuidade esperar que fossem anjos. É justo que seus deslizes sejam questionados e punidos – embora seja improvável que o sejam com base em provas hackeadas e editadas –, é para isso que existem as leis, porque não somos anjos. Mas é mais. A possível destruição da Lava-Jato e de seu legado é a afirmação de que antes dela o Judiciário era angelical, que, então, tais práticas eram inexistentes. Juízes orientarem partes, imagine! E também que a corrupção evidente e desbragada exposta por uma década – muito dela, aliás, já confessa – não existiu ou, se existiu, era um mau menor diante da ordem celestial. E celestial eram também nosso Executivo e nosso Legislativo, limpos de falcatruas, acordos, negociatas...

Ciro Gomes, para quem fiz campanha e em quem votei no primeiro turno das eleições, fez um pronunciamento sobre o caso. Entre outras coisas, criticou as condenações por “conjunto indiciário” – o tal “domínio do fato” – que, diz ele, pode ser mais “moderno” no combate dos crimes do colarinho-branco, mas não é o que vigora em nosso Direito. Mas Ciro diz mais. Afirma que preservar a exigência de provas da escola “positivista” do Direito vigente por aqui preserva liberdades que se estendem ao jovem negro da periferia, ou algo assim... Como se esta velha tradição jurídica houvesse um dia propiciado tal salvaguarda, e não o seu contrário, a eternização dos privilégios dos poderosos e o seu reflexo na miséria e na violência. E sempre nos perguntamos: seria possível romper com tal quadro seguindo estritamente suas normas e, mais, tradição?

O Direito e o Judiciário não são angelicais, nem tem regras “autolimpantes”. Eles deveriam ser construídos pela sociedade, e de fato eles são. E serem frutos da elaboração e fiscalização das representações da sociedade, e, de alguma forma, eles são. Fugir disso, ou desta esperança, é reacionário. Quando se diz que não vale o “conjunto indiciário”, o “domínio do fato”, sabe o que pensa o cidadão comum? Ele pensa que quando ele buscou a polícia e a Justiça para se proteger de um criminoso ouviu que todo mundo sabia quem era e o que fazia o criminoso, mas que não há o que fazer... Por isso são mais duros os mais pobres quando se trata das demandas por polícia e Justiça...

Temos no país uma frondosa árvore envenenada. Um sistema político apodrecido por igual nos três poderes, um sistema representativo que – ainda mais que no mundo – está longe dos anseios da população. Este sistema é eficaz em preservar a miséria, a anomia e a impotência de superá-las. Regar e adubar esta árvore envenenada em nome de preservar uma folhinha verde na copa ressecada, que vive de sugar o restante da árvore, não parece boa ideia. Não atribuímos também à Lava-Jato ou algo semelhante a panaceia de nada. Ao contrário, ela só virá da sociedade. Por isso são importantes os sinais que dirigimos a ela.






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https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2019/06/10/verificamos-moro-dallagnol/?fbclid=IwAR0P9MQd9xjLG4s21q3aWcDnSzkNnFZMSm3IzGyz7LHNV6yiEV-noTGOk_M


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