OBSERVAÇÕES INCÔMODAS SOBRE A PREVIDÊNCIA

Wlamir Silva
Professor e historiador



Existe um déficit da Previdência no Brasil. Há cada vez mais inativos e menos ativos para sustentar os benefícios. Há um peso enorme das despesas previdenciárias nas contas públicas, secando a capacidade de investimentos do Estado para saneamento, saúde, educação ou políticas anticíclicas. Negar este déficit, dissolvendo-o no de todas as receitas da seguridade social, ou mesmo a num conceito amplo de solidariedade social, não apaga o fato de que as receitas são as mesmas para todas as despesas públicas, ocasionando a incapacidade de investimentos públicos.

A questão demográfica é tão real que o mundo todo deu passos no sentido de equacioná-la. Da capitalistíssima e riquíssima Alemanha à socialista e modestíssima Cuba[1]. Os graus e formas variam, e vão depender da realidade econômica, social e política de cada país. Por aqui, isso se evidencia pelas reformas feitas pelos governos recentes: FHC, Lula e Dilma Rousseff. Além das, para eles incômodas, declarações sobre a sua necessidade da reforma, inclusive de limites de idade, feitas por Lula e Dilma Rousseff, quando no poder e em perspectiva de mantê-lo[2]. Candidatos mais sérios à presidência da República, nas últimas eleições – como Ciro Gomes e Marina Silva – não negaram a questão, nem a do déficit fiscal, até mesmo aventando formas de capitalização.

Negar o déficit não é sério[3]. É apenas demagogia. E denota fragilidade de formulação política ou oportunismo político. Muitos jogam para a plateia. Numa metáfora futebolística, driblam para o lado, dão passes de trivela de um metro para o lado e recuam para o goleiro com estilo, guardando imagens para o DVD eleitoral, para seus nichos eleitorais cativos. Parte deles vendem a imagem de um paraíso recém perdido, no qual nada faltava e que, acredite quem quiser, nada tem a ver com a crise atual. Crise, aliás, inventada pela maldade de alguns, segundo eles.


Parte das complicações da nossa Previdência se deve às nossas mazelas econômicas e sociais. Elas maximizam o problema previdenciário. A comemorada 6ª economia do mundo tem baixa produtividade e tecnologia, se desindustrializa há duas décadas, tem salários baixíssimos, altíssima informalidade e carrega um quadro desastroso no saneamento, na saúde pública e na educação básica. Parte do problema da aposentadoria advém da pobreza do trabalho e das condições de vida.

Parte disso se deve à nossa imersão no mundo globalizado. Parte disso é fruto de mazelas que nos são próprias. A imersão ou não, e formas dela, no mundo globalizado, é um enigma a ser resolvido, mundialmente, estruturalmente. Globalismo ou isolamento? É um quadro complicado, intrinsecamente complexo. Fiquemos no assunto aqui tratado. É bonitinho dizer que o “suposto” déficit da Previdência se dá porque pagamos aos bancos. É tentadora a imagem de banqueiros malvados, com dentes vampirescos, tramando a extinção dos pobres. Mas é tolo. Não porque o papel dos bancos não seja fundamental para entender a questão. É por outro motivo.

A economia atual é extremamente financeirizada. O dinheiro, a moeda, no mundo capitalista já foi lastreada pelo ouro, depois pela produção de cada país. Hoje, o dinheiro, o capital, não possui mais lastro material. Há muitíssimo mais dinheiro circulando no mundo que lastro material – até porque mesmo ele é de difícil mensuração, como se mede um streaming, como a Netflix? – e de forma volátil. Isso possibilita que o capital migre com rapidez e facilidade em busca de lucro, seja por trabalho barato, matéria primas disponíveis ou facilidades legais e fiscais. E este capital tem duas faces: a enorme concentração e a sua relativa difusão. Difusão que se dá pelo mercado de ações e, em especial, a ação de fundos de pensão.

O discurso do pagar aos bancos é tolo porque este não é um detalhe, é o cerne mesmo da economia mundial. O cerne da ordem capitalista – e que, em muito, inclui a China socialista – e, portanto, algo que exige o questionamento destas estruturas, do sistema. E, isso é ainda mais incômodo, há falta de alternativa no ar. Os que querem negar isso no varejo parecem, e parecerão cada vez mais, nefelibatas perante a sociedade. Os que convivem bem com esta realidade, lucram politicamente com ela, e a “negam” na mera retórica, vão ser vistos pelo que são: oportunistas.

No caso específico, a dívida pública é a maneira pela qual o Estado brasileiro se capitaliza. É imerso no sistema financeiro internacional que se faz isso. Pode-se questionar elementos da dívida – na verdade, mais no âmbito do próprio Estado e de suas associações com o privado -, mas não dá para negar o sistema pedindo dinheiro a ele de forma contínua. Nossos juros estratosféricos são o Estado brasileiro pagando alto por dinheiro. E paga alto porque o país não se desenvolve economicamente, é ineficaz e corrupto na gestão pública e pratica o “terraplanismo contábil”.

A irresponsabilidade do terraplanismo contábil e da política com fins eleitoreiros nos trouxe – para além dos citados impasses estruturais – aonde estamos. Continuar a fazê-lo, ou a estimulá-lo, vai piorar a situação. Evitar a negociação para conquistar capital eleitoral vindouro, ou atrelar a questão conjuntural a soluções irreais em médio ou curto prazo, escondendo-se num suposto radicalismo é o pior dos mundos.





[1] Escrevi um modesto artigo sobre a reforma da Previdência em Cuba – modesto, mas elencando as fontes para a conferência pelo leitor –, houve quem criticasse que, lá, é diferente, porque no Socialismo é outra a relação com o trabalho. O que deixa um travo estranho: o Socialismo continuará a exigir mais trabalho? CF. http://saojoaodel-pueblo.blogspot.com/2017/03/reforma-da-previdencia-e-argumento.html
[2] https://www.youtube.com/watch?v=vN-m59jBMZk
[3] https://www1.folha.uol.com.br/colunas/pablo-ortellado/2019/02/esquerda-e-conivente-com-terraplanismo-contabil.shtml





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