A CRÍTICA DA (DES)RAZÃO INDOLENTE

Acabo de ler numa rede social a seguinte frase: "[H]á algo profundamente errado com o caráter, com a índole dos brasileiros". O diagnóstico se deve ao fato de este povo ter eleito Bolsonaro, e é feito por um professor de História.



A frase, em si, não é o problema, todos estamos fadados a uma ou outra frase infeliz, embora saibamos que as redes sociais fizeram disso questões. E também saibamos que não se perdoa o outro por frases atravessadas.

Mas tal ideia, em formatos vários, é cada vez mais recorrente no campo à esquerda, ou progressista, no qual se situa, certamente, o autor da frase. E neste campo, e em especial no das Ciências Humanas e Sociais, no da História ainda em particular, a ideia é preocupante.

Há pouco mais de dois anos, uma revista tida como referência do campo à esquerda e progressista, publicou, a propósito dos resultados das eleições municipais de 2016, um repto contra o "pobre povo brasileiro". Um povo incapaz, ignaro, prisoneiro de uma "senzala moral". Na revista, uma foto teve como legenda “Brasileiros ignaros justificam o ‘não voto’”.

O povo era incapaz, ignaro, porque, ignorando a tese de que havia ocorrido um golpe, votara em golpistas, abandonando seus legítimos defensores. É importante dizer que isso foi bem antes da plena ascensão de Jair Bolsonaro. Importante porque mostra que ela é efeito, não causa...

Agora, o povo é incapaz, ignaro, moralmente inferior, de índole ruim, porque ignora a existência de um fascismo. Ao que parece, continuará sendo assim, até que, por motivos misteriosos, um alinhamento dos astros, volte a prestar as homenagens devidas aos seus ídolos.

Mitos identitários - o velho e mau "caráter brasileiro" - não deveriam fazer parte do arsenal dos que militam nas ciências da sociedade. À esquerda deste campo, mesmo ontologias devem ser abandonadas ou, ao menos, muitíssimo relativizadas. Frases soltas em maus momentos são de somenos. Sua repetição e transformação em tese difusa justificadora de uma derrota é grave.

Pespegar a culpa no povo e atribuir a ele índoles, caracteres, identidades etc. não é apenas um impropriedade conceitual, filosófica, sociológica, histórica. É eximir de responsabilidade aos que se arvoram no direito do juízo, e que se veem presunçosamente fora e além deste povo. É confessar a derrota e a renúncia de exercer uma pedagogia política junto ao povo.

A questão posta é por que 57,8 milhões de brasileiros votou Bolsonaro, e por que outros 42,4 milhões não se preocuparam em barrá-lo. É o porquê de os seus adversários não serem capazes de convencê-los. É o porquê de um discurso com laivos autoritários e intenções liberais ser capaz de mais do que os que se põem em posição de juiz de nossa "índole"... Se fosse o caso, uma indolência de intelectuais.

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