VOTO IDENTITÁRIO: O FALSO NOVO E O FALSO REVOLUCIONÁRIO

Nas atuais eleições vêm a lume diversas candidaturas cuja justificativa e valor são dados pela cor, raça, etnia, gênero, orientação sexual, local de moradia etc., ou seja, pela identidade emprestada por estas marcas fenotípicas, culturais ou sexuais. Tais candidaturas possuem duas características evidentes: dão centralidade a tais demandas identitárias e as ancoram no chamado “lugar de fala” como fator de legitimidade.





Não é um fenômeno exatamente novo. Sua inspiração remete ao icônico 1968 francês e teve largo desenvolvimento no seio da esquerda liberal estadunidense. Mais, são demandas cada vez mais reconhecidas e incorporadas pela lógica do grande capital e pelas políticas corporativas. Além de se tornarem cada vez mais políticas públicas de Estado[1]. Nada disso tem, hoje, contradição com o capital ou os estados que o representam.

Há, sim, setores conservadores que os estranham e até repelem. Dentre os mais reativos, parte deles está em setores menos poderosos do empresariado e setores da pequena burguesia. A maior parte deles está, no entanto, em amplos setores da classe trabalhadora, os quais são estigmatizados como “classe média”, fanáticos ou “fascistas”, de acordo com a conveniência. Setores que pouco ou nada tem a ver com a lógica do grande capital.

O maior motivo da ascensão de candidaturas e demandas identitárias de certa esquerda é um cálculo eleitoral. Avalia-se que tais demandas têm grande apelo junto à população e, em vista disso, que as assumir com centralidade poderia renovar a “velha esquerda”. Tal cálculo é feito com base na percepção da simpatia por tais demandas em certos nichos sociais, em particular nas universidades.

O cálculo supracitado é uma miragem. Os nichos nos quais as demandas identitárias são populares – e que não se confunda aqui com o sentimento de igualdade e tolerância predominante na sociedade[2] – são numericamente desprezíveis. Mesmo nas universidades são bem minoritários. Constrangem pelo barulho e agressividade, mas são francamente minoritários. De fato, sua agressividade os faz ainda mais minoritários.

A centralidade de temas identitários não atende, pois, às demandas sociais, em especial de amplas camadas da classe trabalhadora. Mais ainda porque eles competem com demandas da sociedade, como, por exemplo, a corrupção e a segurança pública. Sua justaposição a temáticas “de classe” ou “socialismo” que são evidentemente secundarizadas – às vezes com a irritada ordem de “procure no programa!” – de nada servem, em especial no contexto de uma sociedade tão carente de politização.

Os resultados eleitorais identitários são pífios e devem se repetir nas próximas eleições. A impaciência para com negros que não votam em negros, mulheres que não votam em mulheres, homossexuais que não votam em LGBTs etc.[3] é reflexo evidente disso. Não se trata de “inconsciência identitária”, mas da saudável rejeição a tal critério de escolha política. Rejeição que deve ser comemorada por todos o que anseiam por uma política de classe[4], de crítica global e, sobretudo, de um projeto de transformação universal da sociedade[5].

E não é só no que tange a questões de classe ou relativas à transformação radical da sociedade. Restam secundárias também questões cotidianas e até prosaicas de administração pública, tais como a corrupção e a segurança. E por vezes enviesam tais questões, no que se destaca a da segurança pública, reduzidas a supostos racismos, homofobia e um cômico “ódio ao pobre”, tanto mais ridículo quanto é evidente que as demandas policiais mais duras vêm das camadas mais pobres da sociedade[6].

Reduzem-se, de fato, as questões imediatas da sociedade a uma panaceia utópica, sintetizada numa versão etérea de “direitos humanos”, evidentemente improvável aos olhos da população. O abandono ou o equacionamento infantil de tais demandas faz a alegria de setores conservadores de variados matizes que vão continuamente derrotando tais quimeras.   Ressalte-se que o desaparecimento das perspectivas de classe e transformação global faz estas panaceias ainda mais utópicas, mesmo a longo prazo.

A política identitária fragmenta a sociedade e a classe trabalhadora. Tanto no que tange às perspectivas estratégicas como no processo dialético entre elas e as questões mais imediatas, entre reforma e revolução, em outros termos. É despolitizante, mais ainda na sociedade brasileira, tão carente de organização e acúmulo de discussões. Um atalho conservador de falsas novidade e radicalidade.



[1] É o caso das políticas de cotas raciais e LGBT, em seleções universitárias, concursos públicos, editais etc.
[2] Um patrimônio que se quer queimar no altar identitário, afinal, quanto mais são decantados o racismo, o machismo, a “homofobia” da sociedade brasileira melhor se “vende” a politica identitária. Mesmo que isso signifique ignorar que o racismo estadunidense é maior que o brasileiro e convive com o multiculturalismo identitário a décadas, ou dizer que o país é o pior para a vida de homossexuais, quando há violência, criminalização e até pena de morte em outras plagas. O que se faz, por vezes, com estatísticas suspeitas.
[3] Por vezes se quer forçar uma identidade inexistente. É o caso da vereadora Marielle Franco, assassinada recentemente. Eleita em bairros “de classe média”, e não na região da Maré, que supostamente representaria. Ver infográfico abaixo.
http://infograficos.oglobo.globo.com/brasil/a-votacao-para-vereador-no-rio-de-janeiro-por-zona-eleitoral.html
[4] Não se trata de trocar tais identidades por uma “identidade de classe”, aliás, os trabalhadores estão fartos de saber que ela não faz melhores seus representantes. É bom lembrar que Marx nunca falou em “identidade de classe”.
[5] Uma candidatura LGBT intenta temperar seu caráter identitário com um “contra o agronegócio”. Um slogan quase infantil que remete, de fato, a outra utopia: os arranjos artesanais locais que fazem a alegria da classe média urbana. Seria o caso de perguntar: o que difere o agronegócio das outras formas do capital?
[6] É o caso dos apelos à redução da maioridade penal ou, mesmo, a tolerância para com as ações violentas ilegais contra a criminalidade.

Comentários

Acrescente-se que fenômenos como Lula e Nivaldo (aqui em São João del Rei) são também, em grande parte, identitários. Quando Nivaldo fala em seus comícios que só tem o grupo, ele está buscando os votos de muitos milhares de eleitores que também só têm o grupo, e os ganha! A escolha de Lula pelo PT desde 1989 seguiu essa tática. Por que não um intelectual? Por que não um de tantos quadros de destaque que o PT tinha? Porque o Lula tem cara da maioria dos brasileiros (cabelos crespos, pele não tão clara, baixinho), fala errado, toma cachaça, se identifica com a maioria do povo. Os dois casos mostram o perigo dessa tática! Discordo que esse "identitarismo" não possa ter sucesso em votos, e acho que esse "sucesso" em todos os casos (negros, gays, mulheres etc.) pode gerar políticos muito ruins, de direita, que desunam o povo. Para o eleitor não é um critério menos burro do que votar no "candidato da região". O candidato então não disse como vai legislar, no que vai votar como deputado (que é o que interessa), mas somente que é "da região", ou que é gay, ou que é negro, ou mulher... É assim que o povo não manda em nada!
Para Mark Lilla, a política nacional não é sobre “diferença”, mas sobre comunalidade e é dominada por quem melhor captura a imaginação das pessoas sobre o destino compartilhado. Para ele, precisamos apelar para as questões que afetam a maioria das pessoas. E falar para a nação como uma nação de cidadãos que estão nisto juntos e devem ajudar uns aos outros. A principal responsabilidade política em uma democracia é formar cidadãos comprometidos e conscientes acerca de seu sistema de governo e das principais forças e eventos em nossa história. A democracia não é apenas sobre direitos; confere também deveres aos seus cidadãos, tais como deveres de manter-se informado e votar. E, por fim, educar as pessoas sobre as principais forças que moldam a política mundial, especialmente sua dimensão histórica.