O MINDINHO DO NEYMAR

Wlamir Silva
Professor e historiador


É tentador esculhambar a ala hospitalar, o helicóptero e o jatinho a serviço do dedo mindinho do pé de Neymar. Até faz bem ao ego, o “crítico” sai levinho, com a alma lavada e enxaguada, como dizia um velho personagem televisivo. Mais até porque o menino mimado tem o hábito de sonegar impostos milionários.

Mas, se Neymar fosse atendido no SUS e voltasse para um conjugado num condomínio “minha casa minha vida”, num Fiat 147, os pobres do país continuariam de fora do chique Mater Dei e apertados em trens, metrôs e ônibus. Se ele deixasse de comer em restaurantes refinados, o populacho continuaria com o ragu de sempre. E por aí vai... O mesmo vale para a comparação do “salário” do pimpolho com o dos professores, ou aquele bordão de “quem é o herói de verdade”. Os salários estratosféricos de atletas, astros da música e do cinema[1] e outros são só um sintoma da sociedade em que vivemos. No mundo e, particularmente, no Brasil.


A concentração de riqueza avassaladora da sociedade em que vivemos é a forma como ela, a sociedade, se produz e se reproduz. É sua lógica intrínseca. E nas periferias do sistema cada vez mais globalizado esta lógica ainda se soma a desvantagens de um passado colonial ou afins. Desvantagens não só econômicas, mas também políticas e culturais. Tais como a confusão do público com o privado, o clientelismo e a corrupção.

Mudar isso é mudar a lógica citada. Reformando-a ou revolucionando-a. Para as duas coisas é possível torcer o nariz: é possível mudar parcialmente, ou a lógica deste capitalismo, financeirizado e ultratecnológico, é irreformável? Há forças sociais e mentais capazes de romper com estes poderes concentrados e sedutores como nunca?

Esta sociedade não produz riqueza e serviços para atender às necessidades básicas das massas. Ela concentra meios em padrões de consumo altos e tecnológicos. Reforçando e enrijecendo as diferenças sociais, mas também permitindo uma atrativa mobilidade social e acesso a bens de consumo. Ontem foram as TVs e as geladeiras, hoje as telas planas, a internet e os celulares.  Aprofundando a lógica da sociedade de classes capitalista.

No século XX, a experiência socialista soviética enfrentou a evolução capitalista. Nas primeiras décadas o Estado soviético viveu o desafio de superar o atraso e as desigualdades sociais da Rússia czarista. A lição era óbvia: não bastava socializar a riqueza existente, era preciso produzir riqueza bastante para milhões de russos e habitantes do Império, e para isso era preciso um Estado capaz de galvanizar a sociedade. Foram os anos de coletivização e industrialização “forçadas”.

Em meados do século, a União Soviética mostrava-se vitoriosa, com índices de distribuição de bens e serviços invejáveis, considerando o ponto de partida da Rússia atrasada, com base numa associação entre socialização e fordismo. Fora capaz de responder decisivamente à ofensiva nazista, como antes o fora ao cerco capitalista, e se tornar a segunda potência mundial.

A partir do último quartel do século XX, a União Soviética passou a dar claros sinais de esgotamento. Mostrou-se incapaz de reagir com agilidade às mudanças organizativas e tecnológicas do Capitalismo, o que se revelou pelas restrições de consumo do modelo. E também fez água o sistema político representativo, inapto para reformar e se auto-reformar, vulnerável à hierarquização burocrática da chamada “nomenklatura”, de certo modo um revival czarista. A extinção da URSS em 1991 e seus desdobramentos são evidentes.

A China enfrentou os mesmos problemas e desde fins do século XX adotou um modelo que busca evitar o “iceberg” que afundou a velha URSS: a incapacidade de organização mais ágil da economia e um sistema político representativo eficaz. Um modelo que vai “de vento em popa” e traz diversas questões à tona: 1) a prosperidade econômica garante a sustentação política? 2) a liberação das forças de mercado e enriquecimento, mesmo com planejamento estatal, a caracteriza como socialista? De todo modo, é o mesmo desafio dos soviéticos: não é só, ou fundamentalmente, distribuir riqueza, é criar riqueza sob outra lógica.

Por isso, as benesses produzidas por marés conjunturais de commodities e as medidas de “redistribuição de renda”, compensatórias e destinadas a minorar a pobreza extrema, recomendadas pelo Banco Mundial e afins, mal são paliativos para as mazelas do país que observa atônito o mindinho de Neymar. Mais, dar a tais paliativos de fôlego curto uma importância que eles não têm obscurece as questões vitais em jogo e é, no máximo, inercial. E ainda, conciliar com as formas políticas arcaicas e, até, aprofundá-las, é fortalecer as citadas desvantagens econômica, política e cultura. Isso é nada menos que reacionário.


Deixe o dedinho mindinho do pé do Neymar com a Bruna Marquezine e os franceses, e pense nestas outras coisinhas...




[1] Vale a provocação: se fossem as cordas vocais do Chico Buarque, a grita seria a mesma?

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