JOGADA DE MESTRE E A APORIA DAS “ESQUERDAS”






As eleições de 2018 surpreenderão negativamente muita gente, ainda que não devesse, em vista dos resultados de 2016. A intervenção militar na segurança do Rio de Janeiro será um dos ingredientes desta decepção. Somada às ilusões de que parte significativa da população entenda que o país vive sob uma ditadura, corolário do suposto golpe. Michel Temer deixou escapar que a intervenção no Rio foi uma "jogada de mestre". Seus críticos a todo custo - os únicos que têm menos popularidade que ele - já correram a ridicularizar suas chances eleitorais. Não entenderam nada, para variar.

Temer é um líder do peemedebismo pós Ulysses Guimarães. O PMDB pós-Ulysses, que tem aberto mão de candidatura própria há mais de vinte anos, desde o retumbante fracasso de Orestes Quércia em 1994 (4,38% dos votos). Ele joga "para o time". Tendo ou não o PMDB candidato próprio, sendo ou não ele Temer, as contas peemedebistas visam às bases parlamentares e os executivos regionais. E para isso o foco na segurança é mesmo uma jogada hábil.

A segurança pública é tema abandonado ou, pior, tratado de forma desastrada pelas "esquerdas", que a reduzem ao já ubíquo sistema binário do bem e do mal. De um lado os ricos e os "fascistas", do outro os pobres e os marginalizados[1]. O fundo de verdade contido nesta perspectiva infantil de luta de classes é um quadro impressionista que não resiste à observação do detalhe. No detalhe, a violência do crime pune milhões de trabalhadores acuados. E estes veem é o detalhe, eles sentem a miríade de detalhes que compõem um mosaico aterrador.

Estas esquerdas reduzem o problema da segurança pública ao poema bucólico dos “direitos humanos”[2]. Mas isto é apenas um aspecto da comédia de erros da sua concepção de luta de classes. Sem horizonte real de superação da ordem capitalista, questionada apenas simbolicamente[3], condenam a massa de trabalhadores à espera de um futuro que os livrará de todos os males, e os tentam convencer de que seus algozes cotidianos são seus “irmãos de dor”, identificando trabalhadores a mais abjeta escória social, à parte do putrefato lumpemproletariado que se criminalizou.

Quando muito, se não o zênite de um socialismo mítico, reduzem a esperança popular aos lenitivos de políticas sociais compensatórias que, no limite, remetem ao “pão e circo” da velha Roma. À falta da ”Terra da Cocanha”[4], que os trabalhadores se conformem com a “homeopatia” do neodesenvolvimentismo e das bolsas famílias e quejandos. Ocorre que, como nos “detalhes” da violência, os trabalhadores já sabem que o desenvolvimento não veio e as “esmolas” não minoraram muito seus medos, nem nos tempos das vacas gordas...

Sem uma real perspectiva de transformação profunda da ordem social e com a descrença até mesmo em sua reforma efetiva, a questão da segurança pública se torna um índice da incapacidade dos que a tratam como um “assunto de direita”. As jogadas de mestre na pequena política refletem a ordem em curso na grande política, inclusive dos vácuos e aporias dos projetos políticos em cena. Temer moveu seu peão na casa aberta pela incapacidade de pensar a luta de classes da “esquerda” brasileira[5].

Uma “Esquerda” que junta alhos e bugalhos em sua mal disfarçada desistência de se dirigir à classe trabalhadora, por vezes classificada como “classe média”. A esperança nas “periferias”, nos marginalizados, no lumpemproletariado amorfo e suscetível a vender-se por qualquer coisa, denuncia a incapacidade e a desistência do exercício da pedagogia política substantiva junto à classe trabalhadora. Abandono do convencimento dos que possuem patrimônio ético e de sociabilidade que pode servir de base a tal pedagogia. Mas eles são “reacionários”, “machistas”, “homofóbicos”, “fascistas”...

Alguns aderem a estas concepções pela pressa insustentável diante do quadro de desanimadoras complexidades. Outros porque visam de fato as benesses do poder que se finge de popular, cujos dividendos, aliás, se mostram para a população trabalhadora. Afinal, como observava Marx: “o lumpemproletariado bonapartista também quer enriquecer”[6]. Aos olhos da população trabalhadora, vão parecendo cada vez mais a mesma coisa, e disso as eleições são só um vestígio, um sintoma..




[1] A cruzada contra a “guerra contra as drogas” e a sua redução evidente à descriminalização da maconha é um subproduto secundário desta lógica. Além de inverossímil quanto ao reflexo na criminalidade em seu conjunto – contrariando, aliás, o parcialmente correto diagnóstico da violência como reflexo da ordem capitalista –, vai de encontro à percepção popular, que aí também se torna “fascista”.
[2] Num desserviço, aliás, à questão.
[3] Uns por engano, muitos por cálculo...
[4] País mítico decantado na Idade Média, no qual haveria abundância, harmonia social e liberdade, e não haveria sofrimento, envelhecimento ou o esforço do trabalho.
[5] Os efeitos provavelmente durarão até as eleições, com os ganhos esperados. Não fazemos aqui e agora uma avaliação da intervenção. As críticas às suas limitações são corretas, em especial a descrença de que avance decisivamente o plano de segurança nacional e, mais ainda, as ações sociais, num estado falido. A população comemora o fato, em boa parte porque não espera mais do que um alívio momentâneo e as críticas absolutas ao uso militar são incongruentes com a tolerância para com as mesmas práticas no governo anterior. Por isso não deixam de dar o benefício da dúvida, concordamos com eles.
[6] Karl Marx. O 18 de brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2011, p. 151.

Comentários