Wlamir Silva
Professor
Historiador
No dia 21
de fevereiro do ano corrente os sites de O Globo e UOL/Folha de São Paulo,
publicaram matérias sobre a disciplina de curso de graduação “sobre o golpe de
2016” no Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (UNB)[1]. Em sequência, o ministro
da Educação encaminhou à AGU (Advocacia-Geral da União), ao TCU (Tribunal de
Contas da União) e ao MPF (Ministério Público Federal) pedido de apuração sobre
suposta “improbidade administrativa” pela alocação de professores “para
promover uma disciplina que não tem nenhuma base na ciência, é apenas promoção
de uma tese de um partido político”.
A
interferência na liberdade de cátedra é algo a ser duramente combatido nas
universidades e escolas no país. As universidades devem ser espaços livres para
diversas formas de pensamento e experimentação. É fato que tal liberdade não é
absoluta – como nada no mundo humano –, mas deve ser quase isso[2]. Mas o que eleva o tom das
críticas é, justamente, o fato de uma interferência externa – política e/ou
legal –, o que seria um ataque à autonomia universitária. Afinal, uma
disciplina acadêmica é algo de foro universitário, no qual se submeterá aos
trâmites devidos e, salvo exceções raras, ao talante da liberdade de cátedra
que pressupõe as competências aferidas e as dinâmicas próprias da academia.
Não é o
caso, pois, de retirar das referências acadêmicas do programa da disciplina a
sua justificativa. Pode-se criticá-lo, sempre se pode criticar um programa.
Pessoalmente não nos agrada a imparcialidade assumida, na ausência do
contraditório. Chama a atenção a disciplina quase militar proposta (será típica
da UNB?): provas aula a aula, arguições orais para dirimir dúvidas quanto à “desonestidade
intelectual” (fraude na elaboração das provas), ameaças de suspensão e expulsão,
controles rígidos de presença, proibição de “notebooks, tablets, smartphones e
outros dispositivos com conexão à internet pelas alunas [sic] em sala”[3].
Mas o que chama mais a atenção é o caput
do programa, que mais parece um panfleto, um programa de ação política, que
uma ementa acadêmica. Incluindo “possibilidades” e, já no título, algo que
sempre incomodará um historiador: considerações científicas sobre o futuro! Mais
grave ainda, se somado ao conjunto, é a orientação para os trabalhos de
avaliação que: “deverão incorporar as leituras indicadas”. Leituras de uma
parcialidade, ademais. Mas, repetimos, esta não poderia ser a questão, não
poderia ser uma questão. Não uma questão que justificasse minimamente qualquer
intervenção externa à cátedra, ao Instituto etc.
Feita a
ressalva do repúdio às intervenções externas à liberdade acadêmica, não podemos
deixar de pontuar um incômodo. Como professor de História em universidade
federal há anos, percebemos há tempos um clima hostil às divergências de
opinião e de interdição ao debate. Nas salas de aula e nos corredores, e nos “debates”
de um lado só – de fato, catarses e manipulações políticas – e nos que jamais
são feitos[4]. Não nos parece que o vezo
de uma disciplina unívoca seja um bom laboratório. Na defesa incondicional da
referida disciplina, alguém brada: [quem não gostar] faça outra disciplina
contrária a ela! Não nos parece um bom caminho acadêmico, menos ainda para o
futuro da democracia...
No entanto, assim que soubemos do fato, nos veio uma estranheza evidente. Como
uma disciplina acadêmica suscitou tal fúria censória? Repórteres investigam
programas acadêmicos com o fito de buscar lá notícias? São tão célebres as disciplinas acadêmicas? Então, em primeiro lugar, fomos ao site do Grupo
de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades – Demodê –, que fez pública a
disciplina e seu programa, a única disciplina, aliás, ali exposta[5]. Já nos pareceu algo estranho.
Mais adiante, as coisas ficariam um pouco mais claras. Já no dia
21 de fevereiro, às 18 horas e 23 minutos, a página do Partido dos
Trabalhadores (PT) no Facebook fazia propaganda da disciplina, com a seguinte
chamada, na primeira linha: “Eles podem falar impeachment, mas a história
sempre vai falar Golpe!”[1] O cartaz/ foto, encimado
com “UNB” diz: “Governo é acusado de atacar democracia”. Não nos parece, assim,
que o “fazer proselitismo político e ideológico de uma corrente política”
acusado pelo ministro seja de todo absurdo. Não pelo prosaico programa disciplinar, mas por fora dele.
Parece-nos,
aliás, que foi posta uma isca para o governo, mordida pelo ministro, que não
tem mesmo traquejo acadêmico. Contando com o escudo da liberdade de cátedra e da autonomia universitária. Quem assim o faz não tem compromisso com a liberdade adêmica. Mas este governo logo não existirá. Isso
porque seu mandato acaba este ano, não por qualquer fato criado pelos tolos e
orgulhosos arautos do “Fora Temer” e do “golpismo”. Se algo o arranhou ou
limitou foi a estigmatizada operação Lava-Jato. Mas a Universidade continua. E
já é hora de ela começar a pensar em como ela pode colaborar com a democracia e
para os caminhos da nação. A segregação acadêmica com fins partidários e
imediatistas, dentro e fora das salas de aula, não é o melhor caminho.
[1] Universidade
de Brasília vai oferecer curso sobre 'golpe de 2016'. Disciplina do Instituto
de Ciência Política analisa "governo ilegítimo" de Michel Temer. https://oglobo.globo.com/brasil/universidade-de-brasilia-vai-oferecer-curso-sobre-golpe-de-2016-22417955;
Crítica a Temer, disciplina de curso na UnB terá semestre sobre "golpe de
2016. https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2018/02/21/critica-a-temer-disciplina-de-curso-na-unb-tera-semestre-sobre-golpe-de-2016.htm
[2]
Tem sido utilizada nas redes sociais, como contraponto, o cancelamento do “1°
Fórum de Filosofia e Ciência das Origens”, na UNICAMP, fato que difere por não
ser tal atividade oriunda dos cursos daquela universidade, mas que, num certo
sentido, é até mais forte, pois sequer pode abrigar o evento considerado não
científico/ acadêmico. É curiosa a justificativa da Instituição: “faltavam
integrantes que pudessem debater o tema sob todos os pontos de vista”...”. Deus
fora da Unicamp. https://istoe.com.br/331557_DEUS+FORA+DA+UNICAMP/.
Sob outro ângulo, tivemos uma demissão em tempo recorde – para não dizer
sumária – de um professor por frases controversas, supostamente racistas,
proferidas no calor da sala de aula, fato que criticamos à época: Destruir a
universidade pública pela empatia http://m.folha.uol.com.br/opiniao/2015/12/1716106-destruir-a-universidade-publica-pela-empatia.shtml?mobile
[3] Tópicos
especiais em Ciência Política: O golpe de 2016 e o futuro da democracia no
Brasil. http://www.demode.unb.br/images/ementas/Tpicos%20Golpe.pdf
[4]
Idem.
[5] Não
há ali indicação da data de sua publicação, sabemos que, ainda hoje, em 25 de
fevereiro, continua sendo a única a ser elencada dentre as “disciplinas que
serão ofertadas pelas professoras[sic] do Demodê no primeiro semestre de 2018,
na UnB”. Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades – Demodê. http://www.demode.unb.br
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