Entre o Projeto de Desenvolvimento Nacional , a Ação Partidária e a Tábula Rasa: a trajetória política de Ciro Gomes - Parte 2


André Luan Nunes Macedo- Professor de História
Doutorando em História pela Universidade Federal de Ouro Preto


Ciro teve coragem de se garantir como uma força personalizada no cenário nacional. Não aceitou imposições partidárias, ao mesmo tempo que teve uma leitura da realpolitik e das possibilidades de movimentação tática nessa sopa de letrinhas que é nosso sistema partidário. Ciro é – no sentido bom da palavra - um pragmático com projeto político.

Voltando ao primeiro exemplo deste texto. Se a linha entre socialismo e fascismo é, ao mesmo tempo, tênue, porém não simplista e envolta de complexidades, o que dizer das visões de mundo entre tucanos e petistas, mantenedores de uma política macroeconômica, senão igual, bastante semelhante? O que dizer da estrutura partidária inaugurada pela Constituição de 1988? Elas são a completa fluidez superficial.

Poucos partidos que foram fundados nos anos 80 até os dias atuais no Brasil conseguiram manter sua chama ideológica viva sem se sucumbir às intempéries da ordem democrática, burguesa e representativa. Todas as organizações, à direita e à esquerda, convivem com o mal do fisiologismo e com o excesso de pragmatismo de líderes regionais que controlam as siglas eleitorais.  Não há dúvidas quanto à inorganicidade destes partidos, alheios às bases sociais e dispostos a travar discussões somente em períodos eleitorais. Em maior ou menor grau, essa foi a via de regra até antes do golpe de 2016.

Negar que a personalidade é um elemento de importante destaque na cultura política brasileira e latino-americana é fazer uma tábula rasa quanto à nossa experiência nacional. Somos movidos por determinadas crenças populares que estão inseridas no seio do povo. Um ser capaz de movimentar grandes contingentes das massas e, ao mesmo tempo, produzir um projeto político a partir dessa movimentação já não é mais um sujeito individualizado, faz parte também do imaginário coletivo. “Somente na sociedade o indivíduo pode se individuar”, nos ensina o jovem Marx. Tendemos a individualização, para o bem ou para o mal: o trabalhismo é confundido, dependendo do momento histórico do país, com os figurões Getúlio Vargas, Jango e Brizola – getulismo, janguismo e brizolismo.  Lula e o PT já se confundem num paradigma lulista; na Argentina, Perón é “acusado” de fundar o “peronismo”. Gramsci é acusado de fundar seu próprio marxismo, o de tipo “gramsciano”. Nossa tendência à individuação da representação política transcende as questões nacionais. Ciro Gomes é somente um dos sujeitos fadados ao duro destino de se tornar um paradigma, uma corrente política. Até o momento, prefiro coloca-lo no campo do neotrabalhismo, ou, se quisermos homenagear o Comandante, o neobrizolismo.

Ao mesmo tempo, utilizar de exemplos de sistemas partidários advindos dos Estados Unidos não parece ser a solução. Pior: é uma forma de assumir nosso complexo de vira-latas. Afinal, gostaríamos mesmo que a divisão política brasileira fosse reduzida entre tucanos e petistas do ponto de vista legal, como é, grosso modo, a divisão entre republicanos e democratas? O Brasil pode se resumir à divisão entre coxinhas e mortadelas? Gostaríamos mesmo que nossa ordem social instituída pela Constituição fosse tão pouco flexível e alienada das disparidades econômicas, políticas, culturais e sociais desse país? Por acaso o debate político da ordem democrático-liberal-representativa estaria melhor qualificado com apenas uma polaridade imposta?

 A formação social brasileira não aceita transplantações. É como fazer uma transfusão de um sangue O+ num corpo que precisa de um fator A+. Não que isso nos cegue diante das alternativas encaixáveis em nosso sistema político eleitoral, pelo contrário. A própria revogabilidade do mandato, assumida nos EUA e na América Latina, é um passo para que a estrutura partidária se assente em bases representativas e participativas, fazendo com que o povo exija de seus representantes a defesa de seu projeto político quando prometido em período eleitoral. Os partidos se fortaleceriam e não se dariam ao luxo de fazer alianças às escuras com o sistema financeiro. Inclusive, essa é a proposta defendida pelo “demagogo” Ciro Gomes. Nesse caso, não seria uma doação de sangue, e sim de órgãos. Pergunte por aí se a elite política atual – incluindo o PT – deseja fazer uma reforma política que proponha a revogabilidade dos mandatos. Eu tenho sérias dúvidas se topariam.... 

Não quero passar a mão na cabeça do Ciro. Ele é um ser humano, membro da elite política desse país. Está imune a erros crassos, que inclusive pontuo-os sem grandes problemas. Posso afirmar que seu pragmatismo também se deu devido às arestas que envolvem sua personalidade. Que deveria assumir posições inclusive mais diplomáticas na conjuntura atual. Mas não posso acusa-lo de sectário, e muito menos de anti-frentista. Teve condições claras de rachar o campo progressista e popular formado pelos partidos da ordem em 2010 e não o fez. SE manteve na base do governo, apesar de todos os inconvenientes que isso representa para o acúmulo de seu capital político. Esteve no front contra o golpe do Jaburu impetrado contra Dilma Rousseff. Enfim, não me parece ser um companheiro desleal com as maiorias e os interesses nacionais. Não é um vende-pátria.

Mas, se levarem essa lógica pretensiosamente difamadora contra o candidato estarão fazendo um favor para sua campanha. Que continuem assim. O povo não é otário em acreditar nas simplificações ridículas de setores acadêmicos, que a todo momento buscam demonizar as lideranças de esquerda desse país. O povo também não vive as visões maniqueístas de dissuasão da Avenida Paulista e do sistema financeiro. A tábula rasa é um convite de transferência de votos para Ciro Gomes.

   

Comentários