Wlamir Silva
Professor e historiador
É curioso o papel desempenhado nesta cruzada santa da inteligência contra terrível ralé do senso comum a expressão conceitual “socialmente construído”[1]. Ela surge como uma palavra mágica para sugerir a desconstrução, e aí ela diz: é falso, podemos pôr o que quisermos no lugar. É o caso do gênero, por exemplo, onde se decreta a livríssima escolha. Já a raça, conceito obsoleto pelos especialistas (ops!), ganha materialidade exatamente por existir “socialmente” e, ao contrário, é afirmado como forma de resistência...[2] Agora fica claro como estas escolhas aparentemente contraditórias, e outras tantas, devem ser feitas: pelos nossos formidáveis e doutos especialistas!
Esqueça-se por necessário o arrasador e ubíquo arsenal nietzscho-foucaultiano-Kuhniano de relativização de saberes. Contra a ignorância ignara da plebe não cabem estas sutilezas. E ainda que os especialistas têm por hábito discordar muito entre si e, no mais, de evitar emitir opiniões mundanas sobre o real impreciso. Não! Contra o vulgo far-se-á uma guerra sem quartel! Não é hora de pruridos, a plebe não pode nem alcança saber tais aporias. E há aí uma dose de coerência. Os intelectuais sublimes da cruzada pós-moderna são os novos super-homens – e super-mulheres, na chata, digo, chave, politicamente correta –, a plasmação hegeliana do sonho nietzschiano.
Professor e historiador
Está na moda o
enquadramento da opinião pela autoridade de “especialistas”. Num discurso duro,
e “a passo de ganso”, são desqualificados os que ousam opinar sobre a arte,
gênero e política e afins, enfim, sobre o que ocorre ou deveria ocorrer na
sociedade. A razia é contra o malfadado “senso comum”, ignaro e atrevido, que
se insurge, impróprio, contra os que estudaram “em profundidade” por anos,
décadas, quiçá milênios, e são de variados temas autoridades inquestionáveis e
prescritores ferozes. Historiadores, sociólogos, juristas, médicos, geógrafos, críticos
de arte, especialistas em gênero [?] e interminável etc. São os excêntricos
oráculos pós-modernos.
Os temas são variados, o
do momento é o da arte. Nele, contra a autoridade e sensibilidade educada de
“especialistas” vários, teria vindo à tona o senso comum ignorante,
preconceituoso, insensível, incauto e outros intermináveis adjetivos. Não se
trata mais de determinados grupos, protestos e propostas... Não! É preciso
cortar todas as cabeças da Hidra do vulgo, do vil populacho, que nada sabe de
arte para além da conspurcada mídia. Mas que não se faça disso um drama... Os
ignaros do senso comum podem sim balbuciar aqui e ali suas “opiniões”, desde
que sob o aval de seus oráculos, para o que é conveniente atentar para os seus
éditos, tão magnanimamente concedidos.
É curioso o papel desempenhado nesta cruzada santa da inteligência contra terrível ralé do senso comum a expressão conceitual “socialmente construído”[1]. Ela surge como uma palavra mágica para sugerir a desconstrução, e aí ela diz: é falso, podemos pôr o que quisermos no lugar. É o caso do gênero, por exemplo, onde se decreta a livríssima escolha. Já a raça, conceito obsoleto pelos especialistas (ops!), ganha materialidade exatamente por existir “socialmente” e, ao contrário, é afirmado como forma de resistência...[2] Agora fica claro como estas escolhas aparentemente contraditórias, e outras tantas, devem ser feitas: pelos nossos formidáveis e doutos especialistas!
Esqueça-se por necessário o arrasador e ubíquo arsenal nietzscho-foucaultiano-Kuhniano de relativização de saberes. Contra a ignorância ignara da plebe não cabem estas sutilezas. E ainda que os especialistas têm por hábito discordar muito entre si e, no mais, de evitar emitir opiniões mundanas sobre o real impreciso. Não! Contra o vulgo far-se-á uma guerra sem quartel! Não é hora de pruridos, a plebe não pode nem alcança saber tais aporias. E há aí uma dose de coerência. Os intelectuais sublimes da cruzada pós-moderna são os novos super-homens – e super-mulheres, na chata, digo, chave, politicamente correta –, a plasmação hegeliana do sonho nietzschiano.
Não é de todo ausente do
pensamento sublime dos super-doutos e super-doutas a massa ignara. Lá eles são,
como já era de se esperar no campo rebelde-aristocrático-nietzchiano, um
bucólico rebanho de carneiros. Se seguem seus pastores até se lhes nota um quê
de espontânea bondade e justiça. Se os renega, aaaahhh..., sobre eles desaba o
martelo! Mas os novos super-homens – cansei da gramática politicamente correta
–, e isso também é coerente, aprenderam com o (pós)moderno (neo)Liberalismo.
Eles produzem migalhas que apascentam rebanhos. E aí cabem as compensações
simbólicas e materiais: proteções de constrangimentos terríveis de cor, gênero,
sexo...[3] até a sua heroica censura!
Nem todos reconhecem a benevolência dos seres superiores. A estes: martelo!
Temos nós modesta
expertise, ao menos em anos de estudos, graus acadêmicos, anos em salas de aula
e até uns singelos papelinhos vindos a lume. Abrimos mão, no entanto, de
prescrever juízos. Contentamo-nos em oferecer elementos, enfrentar discussões e
considerar que a História é conhecimento para projetos humanos[4]. Não postulamos o
superonato. Não somos nietzschianos, somos gramscianos, cremos que todos os
homens são filósofos e que se faz mister dialogar com o senso comum, em busca
do bom senso. Espanta-nos esta onda de elitismo doutoral – que irônico que ela
se pretenda justificar pela existência de uma “onda conservadora” – e, mais,
que o campo da arte, das expressões simbólicas, seja dela objeto.
[1] O
que é “socialmente construído” não é irreal. A história da sociedade humana é a
da crescente afirmação da cultura sobre a natureza, sem prejuízo de nossa
realidade animal, e a sociedade em que vivemos é paradigmática desta realidade
cultural.
[2] É
curioso que o gênero, que parte, de toda forma, do dado natural das diferenças
fisiológicas, mesmo que para negá-las, seja reduzido à “construção social”.
Enquanto a “raça”, negada categoricamente por biólogos geneticistas, por
absolutamente falta de elementos não culturais e construída, seja preservada em
estufa...
[3] E
a exclusão das sensibilidades que não contam, como relativas aos costumes e de
pruridos de certas religiões.
[4] A
História tem muitas interfaces, uma delas é com a arte, certas “genialidades”
artísticas soam ridículas se as relacionamos com a sociedade no tempo. De toda
forma, isto não autoriza à prescrição estética...
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