Wlamir Silva
Professor e historiador

A cínica declaração de
Lula sobre a perda do grau de investimento pela Standard & Poor’s (S &
P), dizendo ser nada o que comemorava como grande conquista em 2008, é mais do
que um mero “as uvas estão verdes”. O “momento mágico” de 2008, não obstante o
falso descaso de hoje, dá margem à comparação desairosa com o momento atual. E
Lula sabe disso. É mais um capítulo do sutil abandono de Dilma Rousseff à
própria sorte. Implícita uma comparação entre o seu governo, no qual ele “fez o
que quis”, e o de sua criatura, que buscaria agradar a todo custo a agências
como a S & P. Não à toa, sublinha que as políticas sociais que realizou
foram “responsabilidade do [seu] governo” (1)...
Busca-se o esquecimento
de que já em suas primeiras ações de governo, sem falar no acordo prévio da Carta aos Brasileiros, Lula deu
continuidade à ortodoxia “macroeconômica”, com Antônio Palocci e Henrique Meirelles. Os quais deram azo a uma política baseada
exatamente no respeito aos fundamentos financeiros que, hoje, Lula demoniza em
Levy e Dilma. Fundamentos que não foram contrariados pelas suas políticas
sociais compensatórias ou arroubos de investimentos, com as quais não tinham,
ou têm, contradições de fundo. A questão é mesmo de conjuntura e, sim, de
acúmulos de ineficiência e desestruturação da máquina estatal.
A relação umbilical da
crise brasileira com o refreamento da economia chinesa põe em evidência o que
já se sabia há muito. O “efeito China”, pelo boom de commodities e pelo consumo facilitado, tinha fundamental
papel no “momento mágico” de Lula. Possibilitando políticas sociais, investimentos
e consumo popular de bens. Com uma exportação que cresceu 400% em uma década, a
“responsabilidade do governo” Lula esteve em não aproveitar a maré favorável
para esboçar uma política industrial, em encher o aparelho estatal de uma
miríade de “companheiros”, em desprezar o planejamento, ser incapaz de
alavancar a infraestrutura, em aderir e justificar velhas práticas
clientelistas e, por fim, em patrocinar um esquema de corrupção que assumiu e “organizou”
as práticas tradicionais, em favor de uma máquina política e do enriquecimento
pessoal.
Buscando se afastar de
Dilma Rousseff, Lula alimenta a tese de que tudo ia bem... Até agora. Dilma é
criatura de Lula, o seu projeto com ela era o de uma mediocridade que não o
ofuscasse, e fosse capaz de um governo medíocre que propiciasse o seu retorno
para alterações de rumo. O resultado catastrófico alterou os planos. É preciso
afastar-se da criatura, uma tarefa difícil. É interessante considerar neste
contexto o artigo publicado na Folha de
São Paulo pelo cientista político André Singer. Singer, ao que parece,
retoma ali, informalmente, o posto de porta-voz de Lula (2). Logo em
seu primeiro parágrafo, Singer pontua o atual governo como “desesperadamente carente de orientação”, e
já vaticina que o rebaixamento pela S & P "inaugura o que pode ser um
dos últimos capítulos do segundo mandato de Dilma Rousseff” (3).
Não é contraditório que pela voz mais sofisticada do porta-voz o
rebaixamento da S & P volte a ter significado e que se questionam suas “reações
tópicas”. Os arroubos “radicais” de Lula são o que são... Mas Singer e seus confrades devem saber o que
significa iniciar um artigo em veículo de imprensa nacional com o vaticínio do impeachment grafado em seu primeiro
parágrafo... Frente a isso de pouco vale
a menção, de passagem, a um “plano golpista”. À Lula, Singer insinua que Dilma
cede a “pressões imediatas” no campo econômico, com “cortes urgentes e medidas
administrativas de contenção”, pondo em risco “as conquistas sociais do período
lulista”. À Lula, porque põe os impasses do governo sob o signo das escolhas
pessoais de rumo... Como se vê, nem é tão sutil a secção entre a “Era Lula” e o
governo de Dilma Rousseff, a serviço de um paulatino descolamento político
visando 2018.
A Dilma Rousseff é atribuído um desnecessário e, portanto, escolhido, “ajuste
fiscal draconiano e assassino” cujo resultado é a recessão. Uma recessão veio
antes, e seus efeito já se faziam ver antes do fim das eleições presidenciais,
mesmo antes do mero “anúncio” do ajuste fiscal, como se sabe. Mas vale tudo
para descolar a crise da Era Lula, que passa a se opor ao caos escolhido e
fabricado apenas pela senhora Rousseff. Mas Singer desloca a questão para o que
ele chama de “vácuo político”. Um parágrafo é emblemático da tese a ser
desfiada. Por ele, para fugir ao impeachment
“Dilma precisaria sair
da encalacrada em que começou a se meter no dia seguinte à reeleição, quando,
ao contrário de tudo o que prometera, foi buscar no mercado financeiro alguém
para comandar o Ministério da Fazenda. Isolada do conjunto da burguesia,
aconselhada por Lula desde 2012 a tirar Guido Mantega, com a Operação Lava Jato
desmontando os partidos, na iminência de ter Eduardo Cunha no comando da Câmara
dos Deputados, a recém-reeleita deu o passo fatal”
Parágrafo emblemático porque,
também à Lula, junta alhos e bugalhos, meias-verdades e reticências para
desenhar duas balizas: a primeira, de que com Lula não haveria a crise, a
segunda de que Dilma já deu o “passo fatal”... Nele Dilma é responsável por
buscar no mercado financeiro seu ministério da Fazenda, como se não fosse do
mercado financeiro Henrique Meirelles, sugerido por Lula. Dilma se isola do
conjunto da burguesia, da qual, imagina-se Lula é liderança. Lula já
recomendara a saída de Mantega, como se fosse aquele um representante do
mercado financeiro, não é mesmo? Ainda no parágrafo citado, e que merece
destaque, afirma-se que “a Operação Lava Jato [estaria] desmontando os partidos”...
Nada mais lulista que associar, pela negativa, o esquema de corrupção cevado como
apanágio da vida partidária. A saudável vida partidária que não impedia os
grandes e sólidos avanços sociais dos “anos Lula”, posto em risco apenas por
convenientes espantalhos como o citado Eduardo Cunha...
Singer termina com um
diagnóstico tão sombrio como enigmático. Sombrio, pois já adianta que Dilma
Rousseff não terá “o tempo político” para encabeçar uma resistência ao Impeachment. Enigmático porque preconiza
“Do ponto de vista de classe, um pacto de ruptura com esse círculo vicioso
[que] seria possível e permitiria diminuir as perdas de todos”. Um pacto de
classe que elide as classes envolvidas – “o conjunto da burguesia”? – e permitiria
a felicidade de todos... Ora, o Lulismo que se construiu sobre a despolitização
de classe, pela cooptação de setores pobres via políticas compensatórias e desmobilização
de movimentos sindicais e sociais por verbas estatais e cargos no Estado, propõe
um “pacto de classe” que atenderia a todos! Seria a reedição da “virtuosa”
relação do governo Lula com o grande agronegócio, as mineradoras, o capital
financeiro e as empreiteiras? Mas isso seria possível, sem “ajuste fiscal
draconiano e assassino”, fora da maré montante do “efeito China” e com o acúmulo
de pendências de uma administração incapaz e corrupta?
Lula mescla em público
a defesa protocolar do governo com a evidente intenção de afastar-se de Dilma
Rousseff. Privadamente ou a grupos específicos, se dissocia cada vez mais da “presidenta”.
Critica-a por impor ajustes, quando fala a trabalhadores. Por não fazê-lo, quando
se dirige a empresários. E por não impedir o que considera uma perseguição
política das operações de investigação da corrupção, quando fala a certos
empresários, políticos e “companheiros” mais próximos. Afasta-se também do PT,
ao qual imputa os vícios de só querer empregos e de não ir às ruas como antes.
Ante a evidência dos milhões, expostos, e não negados, pela Lava-Jato, conclama
que os militantes vendam estrelinhas... Procura pôr-se acima do partido e
mantê-lo como base anódina. Utiliza-se dele para, na prática, enfraquecer o
governo, culpabilizando Dilma Rousseff por meio das críticas ao ajuste fiscal
em supostas manifestações contra o impeachment.
O que dizer do artigo
do (ex)Porta-Voz que se inicia e termina com Impeachment ? Que o entremeia com a escolha “fatal” da presidente?
Que vaticina sua incapacidade e sua queda? O plano de Lula de: assistir ao impeachment e guardá-lo como fato
político a ser útil daqui a três anos, esquecidos os 90% de rejeição de hoje;
deixar o PMDB de Temer purgar o ônus da crise e, se possível, associá-la ao
PSDB, sobretudo daqui a três anos, pelo referido uso do impeachment; afastar-se de Dilma Rousseff, sua criatura, e retornar
como salvador da pátria, esquecido ou não percebido sua responsabilidade nas
fragilidades da economia e na despolitização social.
Será Lula bem sucedido? É pouco provável, mas não impossível. Do ponto de vista das classes dominantes e dos setores políticos conservadores dependerá de sua capacidade de forjar quadros para um projeto político e de nação a seu talante. Se não o fizerem, talvez a “hegemonia invertida” propiciada por Lula ainda seja útil. À esquerda, dependerá de até quando e onde se tolerará o mito Lula, e qual a sua capacidade de investir em um projeto político baseado na organização social e política dos trabalhadores. Mas talvez o patrimônio de Lula já tenha se esgotado.
Será Lula bem sucedido? É pouco provável, mas não impossível. Do ponto de vista das classes dominantes e dos setores políticos conservadores dependerá de sua capacidade de forjar quadros para um projeto político e de nação a seu talante. Se não o fizerem, talvez a “hegemonia invertida” propiciada por Lula ainda seja útil. À esquerda, dependerá de até quando e onde se tolerará o mito Lula, e qual a sua capacidade de investir em um projeto político baseado na organização social e política dos trabalhadores. Mas talvez o patrimônio de Lula já tenha se esgotado.
2
Foi porta-voz e secretário de Imprensa da Presidência no governo Lula.
3
André Singer. O tempo foge. Folha de São
Paulo, 12 de setembro de 2015.
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