Wlamir Silva
Professor
Historiador
Um médico é assassinado a facadas
andando de bicicleta na Lagoa Rodrigo de Freitas. Testemunhas afirmam tê-lo
sido por menores, mesmo sem uma reação da vítima, o que faz sentido pela ação de gangues no mesmo estilo na
região[1].
Para uns é quase uma "justiça bíblica": ricaços numa das áreas mais
caras do Rio, em bicicletas caríssimas só podiam mesmo serem
"justiçados" pelos oprimidos... Aliás, não faz muito os médicos se tornaram símbolos de uma "elite branca" digna de todos os desagravos...
![]() |
Um suspeito do assassinato do médico na Lagoa, apreendido, 16 anos, 15 crimes,vários com o uso de facas, como a usada no caso fatal. |
A ex-mulher da vítima - santa
instituição do divórcio - sai em defesa prévia dos agressores: "foi vítima
de vítimas, que são vítimas de vítimas. Enquanto nosso país não priorizar
saúde, educação e seguranças, vão ter cada vez mais médicos sendo mortos no
cartão postal do país. E não só médicos, afinal, morrem cidadãos todos os dias
em toda a cidade, não só na Zona Sul"[2].
Ou seja, enquanto não forem sanadas todas as injustiças sociais são
justificadas as facadas nos ditos "coxinhas". O uso das facas, que se
multiplica na região, mais do que um estágio pré-arma-de-fogo é uma estratégia:
não é proibido portar facas. Mas ferir ou matar a facadas exige frieza e determinação,
ao contrário do, por vezes, nervoso apertar de um gatilho.
A referência às injustiças
sociais e à panaceia da educação como um "mantra" é, e cada vez mais,
risível para amplos setores da sociedade. Para os agredidos e seus próximos é
mesmo uma agressão e um "aperitivo" para o discurso violento do
"bandido bom é bandido morto". Mas muitos não percebem o quão é
trágico para os que vivem nas malhas da pobreza e são trabalhadores e "de
bem", ou mesmo desesperador para os pais que tentam educar seus filhos em
meio a grandes dificuldades e veem a criminalidade ser apresentada a eles como
escolha justificável. Num depoimento um jornalista vítima de ataque semelhante,
por quatro menores armados com facas, conta o que viu no tribunal:
"Vi a família de um dos
'anjinhos' que me assaltaram. Seu irmão, parecido com ele, bem vestido, falando
baixo, com ótima aparência. São moradores de Manguinhos, lugar de onde veio o
assassino de Jaime Gold. Não é Zona Sul, mas lá, como cá, também é lugar de
pessoas dignas. Essa família me pareceu assim, digna. Os 'anjinhos' não! Esses
'anjinhos' tiveram, sim, educação. Não estudaram no São Bento, no Santo
Agostinho ou na Escola Americana. Mas tiveram, sim, família e acesso à escola.
Ouvi isso nesse tribunal. Mas optaram pelo crime”[3].
É discutível se os citados
tiveram acesso à educação, mas é irônico que muitos dos seus “defensores” acreditem
piamente nos avanços da educação básica no país, em especial na última década.
O fato é que nas mesmas famílias há trabalhadores e criminosos, de diversas
idades, e não há no crime e na violência um destino. O discurso de vitimização
aqui representado pela “ex” do médico assassinado, mas corrente em meios
educados e “de esquerda”, é um acinte àqueles pais que batalham diuturnamente
para que seus filhos se tornem trabalhadores.
Parece ser “de esquerda”, “radical”,
até “marxista” este salvo-conduto ao crime, numa cruzada contra os “coxinhas”,
o substituto genérico e midiático da burguesia. Nada mais longe da realidade. O
próprio Marx foi duro com o que chamou lumpen-proletariado, escória, refugo, massa
indefinida e desintegrada, inconfiável, que se beneficiava “às expensas da
nação laboriosa". Na tradição marxista os trabalhadores são a força a ser
considerada. Mas há os que confundem marxismo com uma corruptela pós-moderna de
matriz foucaultiana e que, negando a luta de classes e a perspectiva de
emancipação humana, voltam os seus olhos para tudo que é marginal, “transgressor”
ou “periférico”. A impotência diante do capital organizado, e por vezes sua naturalização, é "purgada" por um condescendente paternalismo...
A “ex” do médico assassinado apressou-se em seu manifesto vitimizador para evitar o uso do caso em favor da redução da maioridade penal. O jornalista vítima de assalto fecha seu depoimento clamando: “Precisam ser severamente punidos, tenham 8 ou 80 anos! Não importa!”. Como tudo tal discussão é sugada para um dos dois polos em evidência. Uma maioridade penal que é um tabu para alguns e se torna, vide pesquisas de opinião, panaceia para a maioria.
A “ex” do médico assassinado apressou-se em seu manifesto vitimizador para evitar o uso do caso em favor da redução da maioridade penal. O jornalista vítima de assalto fecha seu depoimento clamando: “Precisam ser severamente punidos, tenham 8 ou 80 anos! Não importa!”. Como tudo tal discussão é sugada para um dos dois polos em evidência. Uma maioridade penal que é um tabu para alguns e se torna, vide pesquisas de opinião, panaceia para a maioria.
Mas o pior é o espectro de
argumentos em voga. De um lado o “mantra” vitimizador, no limite justificador
do ataque aos “coxinhas”, travestido de “esquerda” ou “marxista”, no fundo desesperançado
de empreitadas políticas de maior fôlego e radicais. Do outro a massa, inclusive de trabalhadores pobres –
estes conscientes da simplificação vitimizadora –, condenada ao discurso “justiceiro”
de reacionários porque cansados do discurso “religioso”[4]
de “esquerdas de carochinha”...
[1] http://odia.ig.com.br/noticia/rio-de-janeiro/2015-05-21/medico-morto-esfaqueado-na-lagoa-sera-enterrado-nesta-quinta-feira.html
[2] http://odia.ig.com.br/noticia/rio-de-janeiro/2015-05-20/ex-mulher-de-jaime-gold-condena-reducao-da-maioridade-penal.html
[3]
Depoimento reproduzido na coluna de Renato Maurício Prado no Globo de 22.5.2015.
[4]
Elemento religioso que está presente na formação mesma de certas “esquerdas”,
da “opção pelos pobres” e um “franciscanismo” filantrópico...
Comentários
Postar um comentário