
Nas últimas
semanas, enquanto a direita defende a limitação da liberdade de expressão,
parte da esquerda ousa abandonar os jornalistas assassinados, nossos camaradas
de esquerda, e defender a mesma volta ao passado desejada pela direita, sob o
pretexto esfarrapado de defenderem os povos muçulmanos do imperialismo. Além de
abandonarem a liberdade de expressão, abandonaram as críticas pertinazes de
Lênin contra o terrorismo, e abandonaram a esquerda do mundo islâmico. A tese desses capitulacionistas cai por terra quando
se constata que o império não está precisando de mais propaganda nenhuma para
continuar suas agressões contra os árabes.
O Estado
Islâmico está cortando cabeças, o que é propaganda suficiente para dez guerras,
e se os países da OTAN não estão agredindo com mais força é porque estão
ficando sem pessoal. Nos EUA Obama fala em reduzir os efetivos, e na guerra
contra a Líbia nem sequer pilotos os EUA forneceram, ficando esse encargo por
conta dos franceses e ingleses. A França está envolvida em agressões na África,
e talvez agora até precise retirar tropas de lá para reforçar a segurança
interna. Ou seja, os atentados não se enquadram como propaganda para ataques
imperialistas. O atentado pode ter sido arquitetado pelo Mossad, serviço de
inteligência israelense, mas serviços de inteligência e grupos terroristas são
complementares, não opostos como se imagina. Serviços de inteligência atuam
usando a chamada “provocação”, ou seja, infiltram-se em grupos políticos e
convencem seus membros a cometerem atentados. Também os interesses de
terroristas islâmicos e do Mossad são complementares, pois ambos querem limitar
a liberdade de expressão. Contudo, se for esse o caso (não há disso nenhuma
prova ou evidência), é mais um motivo para não termos nenhuma simpatia nem
pelos terroristas, nem pela tática terrorista, nem pelo objetivo de limitar a
liberdade de expressão.
Antes de
entrarmos no assunto central, tratemos da tática terrorista. Quase sempre ela é
um fracasso. Se o objetivo é chamar a atenção, seria mais eficiente um blog, um
post na internet, um panfleto, porque bombas não dão as mensagens que os que as
armam querem, mas a mensagem que os jornalistas que a noticiam quiserem dar.
Normalmente os atos terroristas, mesmo não sendo intencionalmente suicidas,
resultam em enormes perdas de pessoal para as organizações envolvidas. Mas os
resultados, por sua vez, são mínimos. Observe-se o caso dos dois atentados de
Paris. O primeiro, que tornou-se o centro dos debates, foi contra jornalistas,
humoristas, e o objetivo seria aterrorizar quem pensasse em desenhar Maomé.
Qual o resultado? Uma revista que vendia 60 mil cópias, só em francês, vendeu 7
milhões, em várias línguas. Eu mesmo não conhecia a Charlie Hebdo e não
compartilhava charges de Maomé, porque não tinha motivos para isso. Agora eu
compartilho as charges de Maomé da Charlie Hebdo, pois tornou-se necessário.
Como eu, milhões que nunca pensariam em compartilhar um desenho de Maomé agora
o fazem. O resultado do ato, como se vê, foi o oposto do desejado. O segundo
ataque foi contra um mercado de judeus. Ora, o único motivo pelo qual judeus e
muçulmanos brigam é a invasão da Palestina por Israel. Se Israel saísse da
Palestina acabaria todo o motivo da briga, pois nunca antes judeus e muçulmanos
brigaram, em mais de mil anos de convivência. A guerra de resistência dos
palestinos contra Israel é justa, e os atos que acontecem em território
palestino ou israelense são atos de guerra de guerrilhas. Porém, ataques contra
judeus na França são uma estupidez, porque não são contra Israel. Qual foi o
resultado? Judeus franceses estão se mudando para Israel, porque se sentem mais
seguros lá do que na França. Ou seja, o ato terrorista, como de costume, gerou
o oposto do que objetivava. Aliás, nada fortalece mais o sionismo, movimento
político-religioso judeu pela criação e manutenção de Sion, Israel, a “terra
prometida”, do que as perseguições aos judeus na Europa. O interesse islâmico
devia ser garantir a segurança dos judeus contanto que fora da Palestina.
Contudo, a
maioria dos que capitularam aos desejos da direita vão argumentar que também
condenam o terrorismo, mas estão de acordo com os objetivos dos terroristas,
que supostamente seriam defender o mundo muçulmano do império, e mais especificamente
a Palestina de Israel. Quando surge uma novidade, antes de aprendê-la, nós
tentamos enquadrá-la em categorias já conhecidas. Só depois desse exercício o
cérebro humano aceita se dedicar a um trabalho ainda maior, que é encaixar a
novidade no mundo conhecido, que se modifica e precisa ser compreendido
novamente. Em meio aos pensadores de esquerda isso não é diferente. As vezes é
até caricatural, como o fato de a cada novo episódio aparecer algum maluco para
dizer que foi tudo uma armação da CIA ou de outro serviço de inteligência. Ou
seja, não existe mundo real, ninguém faz nada, porque tudo que acontece foi
feito pela CIA, mais onipotente que o deus da Bíblia, que para convencer Jonas
a se tornar profeta precisou lançar tempestades contra todo um navio, até a
tripulação resolver jogar o escolhido no mar, ele ser engolido por uma baleia e
jogado na praia de volta. A acreditar em nossos experts hoje deus teria menos
trabalho contratando a CIA. Quando o lugar comum não é a CIA, é “o”
imperialismo, ou se não é o fascismo que está sempre voltando desde 1945. Sim,
novos fascismos surgem, vide Ucrânia, mas ficar gritando sempre que ele está
vindo lembra a história de Pedro e o Lobo. Infelizmente, nossos revolucionários
parecem mais preocupados em vislumbrar as operações da CIA e a volta do
fascismo do que em descobrir os caminhos da Revolução. No caso atual, devido ao
fato dos assassinatos terem sido cometidos por militantes fanáticos muçulmanos
muita gente está enquadrando o caso nos esquemas antigos, como uma provocação
armada para estimular a guerra contra países muçulmanos.
Nossos
capitulacionistas se esquecem de que nos países muçulmanos também há uma
esquerda, que luta por liberdade de expressão, que luta para poder desenhar
Maomé e para poder fazer piadas. Em nome da luta contra o imperialismo o que se
propõe é abandonar a esquerda desses países oprimidos da pior maneira possível,
que é calando-nos também aqui, onde podemos falar. Como um jornalista de
esquerda poderá conquistar sua liberdade em seu país autoritário se nos países
ditos democráticos os jornalistas abrirem mão da liberdade que têm?
A situação
atual é uma novidade. Na verdade, algumas pessoas nem vêem a questão! Nota-se
muita gente comparando os 12 mortos da Charlie Hebdo com os 2 mil mortos da
Nigéria, como se a questão fosse número de mortos. Apesar da mesma tática
terrorista, os assassinatos dos cartunistas franceses tem um significado
completamente diferente do 11 de Setembro, dos atentados de Londres e da
Espanha, dos atentados na África, muito diferente dos de Israel, que são guerra
de guerrilhas, e até do outro atentado que aconteceu em Paris mesmo horas
depois. Talvez nem seus fomentadores muçulmanos entendam isso, e os prováveis
fomentadores ocidentais, se entendem, só entendem pelo ponto de vista que
querem entender. Há alguns anos, quando um jornal dinamarquês publicou uma
charge de Maomé, multidões levantaram-se enfurecidas no mundo muçulmano,
prenunciando o conflito atual. Mas então a violência se restringiu aos próprios
muçulmanos, imolando-se em praça pública, e o resto do mundo ficou comovido.
Agora, foi muito diferente. Jornalistas foram mortos fora das fronteiras
muçulmanas, e o foram por serem humoristas! Ou seja, eles ameaçaram todos os
jornalistas e humoristas do mundo. Colocaram uma espada no pescoço da liberdade
de expressão. A guerra que se iniciou não é entre Estados, nem entre nações,
nem entre religiões, é entre avançar ou recuar, é entre esquerda e direita, é
entre a idade média e o futuro.
O fanatismo
religioso existe, e está atuante. Sim, ele tem sido estimulado, seja por
serviços de “inteligência”, seja pelas agressões aos muçulmanos, seja pela
propaganda anticomunista constante, que inclui propaganda religiosa, é claro.
Mas uma coisa não deixa de existir porque foi estimulada por serviços de
inteligência. Aliás, esse fanatismo religioso é de direita mesmo nos países
muçulmanos, em alguns dos quais muita gente tem sido morta por lutar por
exercer um pouquinho de liberdade de expressão. Já dissemos que existe uma esquerda
no Islã, e ela luta, entre outras coisas, pela liberdade de brincar com o
profeta deles como nós podemos brincar com os nossos. Podemos, pois
conquistamos esse direito, na França desde a Grande Revolução de 1789, e no
Brasil desde a Revolução do Porto de 1820, mas nos dois casos com muito
esforço, muito sangue de jornalistas regando o chão.
Agora,
sobretudo com a difusão da internet, o mundo está muito ligado. Até há pouco
tempo os muçulmanos podiam conseguir fechar seus países culturalmente, e impor
lá dentro limites à liberdade de expressão e ao humor. Agora não estão podendo
mais, seja pela comunicação virtual, seja devido a terem milhões de imigrantes
vivendo nos países ocidentais. Então, a não ser que a direita muçulmana consiga
trancar de novo seus povos e fechar-lhes os olhos, o mundo islâmico avançará.
Por exemplo, aprenderá a tolerar o humor, como aprendemos nos mundos cristão,
budista etc (claro que as divisões religiosas são para seguir o raciocínio
desse assunto). Só existe uma maneira de evitar esse avanço sem trancar o mundo
muçulmano em uma gigantesca reserva, que é fazer o resto do mundo retroceder.
Ou seja, nós todos no resto do mundo teríamos que abrir mão do direito que
conquistamos debochando de nossos próprios profetas, e agora teríamos que
voltar a termos assuntos intocáveis, e isso para que os poderosos do mundo
muçulmano continuem mantendo toda aquela parte da humanidade presa à idade
média.
A
estratégia adotada por esses fanáticos é o medo, o terror. Querem impor suas
leis ao resto do mundo usando o terror, o assassinato. Acreditam que assim
conseguirão gerar a autocensura em todo o mundo. Se estudassem saberiam que nem
a inquisição, torturando e queimando pessoas vivas, conseguiu calar os hereges.
O incrível
é gente que se diz de esquerda disposta a abrir mão da liberdade de expressão
sem pestanejar. Quanta falta de visão sobre o que é importante e o que não é. A
liberdade de expressão é VITAL para os comunistas e para a esquerda em geral.
Se aceitarmos que a liberdade de expressão tem limites serão os comunistas e os
assim denominados os primeiros a serem “limitados”. Limitar a liberdade de
expressão é o sonho da direita desde 1789, e limitar a liberdade de expressão
da esquerda é o sonho atual, tanto que a revista atacada é uma revista de
esquerda.
Se
pensarmos bem, a liberdade de expressão foi a maior, se não a única, conquista
de 1984, 1985 e 1988. O povão sabe disso ao seu modo, pois o que entende por
democracia é hoje exclusivamente liberdade de expressão. Um raciocínio simples
e realista, o regime que temos seria “a democracia”, e a única coisa em que ele
se destaca do passado é que nele existe liberdade de expressão, obviamente
perseguida pelos poderosos que tentam limitá-la pelas ameaças, pelos processos
judiciais, pelo poder financeiro etc. Não que esse mesmo povo valorize essa
liberdade de expressão que é para eles a própria democracia, pois é capaz de
votar em inimigos jurados da liberdade de expressão sem nenhum remorso.
O descaso
do povo com a liberdade de expressão compreende-se, posto que pouco faz uso
dela. Só recentemente, com a internet, o povo começou a ter ocasião de fazer
uso da liberdade de expressão. A internet é o terror dos políticos, da direita,
das TVs, da grande imprensa em geral. Sem liberdade de expressão, que
significado teria a internet? Como impor limites à liberdade de expressão sem
dificultar a comunicação coletiva na internet? A internet é um alvo, e não há
como atingi-lo sem mirar na liberdade de expressão.
Infelizmente,
tem surgido nos últimos tempos uma tendência de desrespeito à liberdade de
expressão mesmo entre pessoas ditas de esquerda, sobretudo no meio governista,
mas também entre os oposicionistas. Essa tendência propõe censurar coisas e
tenta censurar na prática, por meio de linchamentos virtuais. As justificativas
podem ser raciais, sexuais, religiosas etc. Já aconteceu o caso de portugueses
querendo proibir a divulgação de piadas de portugueses, e não foi essa a única
piada pronta, pois tem se tentando censurar até livros de Monteiro Lobato. Daí
compreende-se que agora mais ou menos as mesmas pessoas proponham que todo o
mundo não islâmico se autocensure como se vivesse sob as leis de um califa.
Deveríamos ser condescendentes com os fanáticos religiosos apedrejadores de
mulheres.
Proteger o
fanatismo islâmico não tem nada a ver com proteger os povos que penam sob esse
fanatismo. Pelo contrário, apoiar esses povos é ajudá-los a se libertarem da
ignorância, da religião. Se o império os ataca é entre outros motivos porque
eles são alvos frágeis, pois é assim que qualquer predador escolhe suas
vítimas. Devemos condenar o imperialismo, mas também devemos condenar o
fanatismo religioso, e não podemos abrir mão de nem uma partícula de liberdade
de expressão. Não há nenhuma relação entre desenhar Maomé e defender a agressão
militar contra um povo do Islã. Para apoiar um povo agredido pelo império não
existe arma mais necessária que a liberdade de expressão, então não é sequer
coerente aceitar limites à liberdade de expressão em nome da defesa de povos
agredidos. Os povos muçulmanos precisam de liberdade de debochar da religião e
de seus líderes religiosos lá em seus países, pois só assim se livrarão de seus
chefes corruptos, vendidos, se tornarão fortes e serão mais respeitados. Contribuir
para o avanço do Islã pode custar caro, como a luta por liberdade de expressão
sempre custou, mas no fim venceremos. Se a capacidade dos fanáticos de
assassinar crescer, se apelará para o anonimato, até que a estratégia
proibicionista se prove um completo fracasso e deixe de ter adeptos.
Comentários
Postar um comentário