SOMOS CHARLIE! OU SOMOS MAIS ÁRABES QUE OS ÁRABES, MAIS MUÇULMANOS QUE OS MUÇULMANOS, MAIS COMUNISTAS QUE O PCF, OU APENAS TOLOS?



Wlamir Silva
Professor
Historiador

A grande manifestação encabeçada pelo Partido Comunista Francês (PCF) reuniu 35 mil pessoas em Paris. A emblemática frase "Eu sou Charlie" e os gritos de "Charlie!" se destacaram num amálgama heterogêneo de esquerdas e outras formas de pensamento. No alto do sítio oficial do PCF, e da Frente de Esquerda, se destaca o "Nous sommes Charlie" e, mais, a convocação para a manifestação evocando os valores da República. Um pouco abaixo, o lema revolucionário de 1789, Liberté, Egalité, Fraternité[1].

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O palestino Hamas e o libanês Hezbollah tentam se desvencilhar da identidade com os jihadistas[2]. Até porque tal identidade é muito conveniente aos seus inimigos: o sionismo, a direita europeia preconceituosa e anti-imigrantista e, de forma mais complexa e mesmo contraditória, a forças que lucram estrategicamente com o “choque de civilizações”. Afinal, a Al-qaeda foi cevada nas entranhas da Arábia Saudita, maior aliada dos EUA no Oriente Médio, e fabricantes de armamentos alimentam várias partes envolvidas.

O líder do Hezbollah diz que “que os jihadistas que realizam atentados no mundo são mais nocivos para o Islã que as obras que fazem piada com Maomé” e classifica o terrorismo de “atos imundos, violentos e desumanos”. Sem o peso maior do islamismo, o Hamas denuncia de forma contundente a estratégia de relacioná-los ao terrorismo jihadista e “condena as tentativas desesperadas do primeiro-ministro israelense de fazer uma ligação entre, de um lado, nosso movimento e a resistência de nosso povo, e, do outro, o terrorismo através do mundo”[3].


Por aqui, vemos “esquerdas” repelindo o “Eu sou Charlie”. Uns em nome de uma canhestra construção ideológica pela qual a crítica ao terrorismo extremista religioso corresponderia ao fortalecimento do imperialismo e da direita europeia[4]. Para estes é preciso aceitar tudo o que é, confusamente, árabe e antieuropeu. Creditam ao problema cultural os problemas dos imigrantes, desconhecem os problemas dos trabalhadores europeus e reforçam, assim, as construções socialmente separatistas da direita: jogam os trabalhadores franceses no colo de Le Pen!

Outros rejeitam o “Eu sou Charlie” por não admitirem a liberdade de expressão como questão de fundo. Lamentam apenas os assassinatos, mas demonstram o desejo de censura contra “excessos”. Uns pelo que para eles – e para os assassinos do Charlie – parece um inaceitável ataque à religião. Um deles, curiosamente um religioso..., diz com todas as letras: “Nem toda censura é ruim”[5]. Para outros o Charlie era também islamofóbico, por, supostamente, representar muçulmanos como terroristas (deviam vesti-los como Charlie Chaplin?) e, eventualmente, terem sido desrespeitosos com negros e mulheres...

Classificando o periódico como islamofóbico, racista e misógino, alguns encontram ali uma espécie de versão politicamente correta do infantil: “bem feito”! Para eles não importam os contextos, o caráter limítrofe do estilo satírico ou o peso de cada charge na história de um jornal de 45 anos de existência. Mas, o fundamental é que para estes a liberdade de expressão deve ser a liberdade de expressão do que ELES consideram bom, justo e aceitável...

Tal postura é ainda mais sensível pelos que toleravam a mais ácida crítica à religião, com a qual concordam, mas estrilaram contra uma ou outra charge tida por racista, tema mais sensível ao politicamente correto tupiniquim. Afinal um humorista com pretensões “politicamente corretas” aponta o fato de o pastor Marco Feliciano haver externado “o desejo de que o Porta dos Fundos ‘brincasse com islamismo pra ver o que é bom pra tosse’”[6]. Ou seja, a correção e o desrespeito são seletivos. Politicamente incorreto, passível de censura e punição, e até compreensivelmente inspirador de violência é aquilo com que nós não concordamos.

Não parece pensar assim o PCF, ou a Frente de Esquerda francesa. Ou não grafariam o Liberté, Egalité, Fraternité, como princípios que devem ser ampliados e plenamente realizados, não negados como "brancos", europeus e elitistas. Não clamariam à República e, de certo modo, à Nação, como dimensões históricas a serem transformadas, e não negadas frente a um “periferismo” racialista, piegas e idealizado. Não negam, pois, a liberdade de expressão como princípio universal a ser aprimorado. Não negam os trabalhadores franceses, o conjunto da sociedade, ou os confundem com a tal “elite branca”, e não os jogam nos braços da extrema-direita. Não confundem terrorismo com árabes ou islâmicos.



E não, não nos rendemos aqui ao que diz o PCF, ou o Hamas... Ou qualquer outro. Precisamos pensar por nós mesmos. Fugir por nós mesmos nas nossas armadilhas culturalistas e identitárias. Discutir nossas tendências a relativizar a liberdade de expressão diante da cara feia de grupelhos obtusos. Pôr em questão a tentação de dividir a classe trabalhadora em busca de “atalhos” aparentemente mais fáceis do racialismo, da política de gênero, de sexualidade ou juventude[7]. Sobretudo ter como central o mundo do trabalho e, ainda mais, a crítica ao complexo sistema capitalista e a perspectiva de sua transformação radical. Só assim deixaremos de ser 1% nas eleições, retomaremos paulatinamente o significado político e fortaleceremos os que no mundo também assim o desejam.



* Todas as imagens foram retiradas do sítio oficial do PCF.

[1] Nous sommes Charlie - Marche républicaine dimanche 15h00 de république à Nation.
http://www.pcf.fr/, acessada em 12 de janeiro de 2015. O ponto de partida e de chegada, as praças da República e da Nação, também têm seu significado.

[2] http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2015/01/1573444-grupo-palestino-hamas-condena-ataque-contra-jornal-frances.shtml.

[3] Idem.

[4] Plínio Zúnica: Por que não sou Charlie Hebdo. http://www.vermelho.org.br/noticia/256927-6

[5] Trata-se do senhor Leonardo Boff. Boff foi condenado em 1985 pelo Vaticano e cumpriu a pena, literalmente, religiosamente. Parece para ele natural submeter-se a ditames teocráticos... https://leonardoboff.wordpress.com/2015/01/10/eu-nao-sou-charlie-je-ne-suis-pas-charlie/

[6] Gregório Duvivier. Viva a falta de respeito, humor não é ofensivo. http://www1.folha.uol.com.br/colunas/gregorioduvivier/2015/01/1573507-viva-a-falta-de-respeito-humor-nao-e-ofensivo.shtml

[7] Questões importantes, mas que não podem ser centrais, em parte porque podem ser resolvidas ou avançadas no âmbito burguês, e devem ser absorvidas no seio e dinâmica de movimentos globais . Em especial é problemática a separação dos trabalhadores em nichos identitários, os separando e mesmo os opondo pela cor, gênero, opção sexual ou faixa etária.

Comentários

O problema é que o governo e a mídia utilizam as enormes mobilizações populares realizadas no dia 11 de janeiro de 2014, aproveitando-se da comoção e da condenação aos ataques terroristas. Mas essas mobilizações são contraditórias. De um lado, uma ampla e comocionada mobilização popular em defesa da liberdade de expressão. Do outro, um enquadramento institucional e midiático que aponta em sentido contrário. Assim, a mobilização foi utilizada pelo governo. O desmoralizado presidente François Hollande conseguiu congregar atrás de si grande parte das forças políticas francesas. Além disso, contou com o apoio de toda a reação europeia, oligarcas criminosos como o Petro Poroshenko, que apoia massacres contra o povo ucraniano, estiveram lado a lado com outros como o Benjamin Netanyahu, responsável por crimes permanentes contra o povo palestino e outros líderes do Oriente Médio cuja cumplicidade com o imperialismo os torna corresponsáveis pela destruição do Iraque ou da Líbia, pela atual tragédia Síria e pelos crimes permanentes contra o povo palestino. Presidentes de países sob o domínio do exército francês, como o Mali, também foram prestar vassalagem ao patrão. Também estavam presentes primeiros-ministros que conduzem uma implacável guerra contra os direitos dos seus povos, como Pedro Passos Coelho, David Cameron ou a Mariano Rajoy. Outros líderes de governos antidemocráticos e de extrema-direita e outros que, perante a ascensão da extrema-direita nos seus países, adotam posicionamentos e a própria linguagem dessa extrema-direita, como ocorre em França e no Reino Unido. Com tais presenças, bem fez o Pôle de Renaissance Communist en France (PRCF) em não comparecer à manifestação. Certa unanimidade causa repugnancia. A condenação do crime contra o Charlie Hebdo não significa apoiar os que dele se aproveitam. A pretexto de homenagearem os redatores da revista "Charlie Hebdo" juntaram um amplo espectro de líderes contra os quais a própria revista exercia uma vigorosa sátira. Isto é contraditório. De um lado o discurso securitário do poder de Estado, o louvor e a necessidade de uma ainda maior repressão e vigilância policial indiscriminada da sociedade. Podemos esperar que na Europa e nos Estados Unidos esteja em preparação um novo momento de repressão a pretexto do combate ao terrorismo. Do outro lado uma enorme massa popular cuja comoção não a pode fazer esquecer que a defesa da paz e da segurança é inseparável do combate a todos os que exercem a violência a partir do poder, seja ela sob a forma da exploração, da exclusão, da pobreza, da destruição dos direitos dos trabalhadores e dos povos, seja sob a forma da repressão e do terrorismo de Estado.
Tem me irritado essa mania idiota comum entre a esquerda de fazer "análises" histéricas porque a direita atua... O que queriam? Que a direita ficasse em casa quieta??? Em que mundo vivem? Foi a mesma choradeira idiota em Junho... Haveria uma onda de direita, até fascista, só porque uns coxinhas foram para as ruas??? Existirá gente tão abobada que acha que só existe esquerda e que a direita vai deixar de atuar em algum momento??? Daí vêm essas análises absurdas que destacam a ação da direita para questionar as posições da esquerda... Ora, não defino minhas posições com base no que meus adversários fazem. Não acredito em teorias da conspiração. As ações dos adversários só são importantes enquanto informações... Já minhas posições eu decido de acordo com meus próprios planos.
Não se trata disso. Trata-se do problema de que o atentado seja utilizado pela extrema-direita, que se movimenta para avançar na agenda bélica e xenófoba, e na própria restrição e controle das liberdades civis...
Wlamir Silva disse…
4 milhões de "coxinhas" foram às ruas só em paris... Os Le Pen crescem politicamente e Hollande capitalizam a incapacidade das esquerdas fazerem a crítica ao terrorismo e ao ataque à liberdade de expressão.
Alain Badiou, "O racismo dos intelectuais", Le Monde (http://choldraboldra.blogspot.com.br/2015/12/o-racismo-dos-intelectuais.html)