OU SOMOS CHARLIE OU AHMED. EU SOU CHARLIE!



Wlamir Silva

Professor
Historiador

É fácil fazer o repúdio formal dos assassinatos dos jornalistas/ humoristas franceses e, incontinenti, pontuá-lo com um gigantesco MAS e transformá-lo num pé-de-página de um grosso volume dedicado a um abstrato imperialismo e uma penalizante islamofobia. Os muçulmanos não admitem que se brinque com Maomé, ora, porque não os satisfazemos? E aí não há pejo de se defender a mais deslavada censura: "Bastava que a justiça francesa tivesse punido a Charlie Hebdo no primeiro excesso. Traçasse uma linha dizendo: “Desse ponto vocês não devem passar. 'Mas isso é censura', alguém argumentará. E eu direi, sim, é censura. Um dos significados da palavra 'Censura' é repreender.”(1).


Se alguns muçulmanos não toleram que se faça humor com seus símbolos, que todos se enquadrem aos seus desejos. Assim como aos de todo e qualquer grupo que se sinta prejudicado. Em tão simples equação pode-se proibir, por exemplo, que negros sejam representados como criminosos: "É como se fizéssemos no Brasil uma charge de um negro assaltante e disséssemos que ela não critica/estereotipa os negros, somente aqueles negros que assaltam...". E, claro, isso serve para mulheres, gays, gordos etc. É mesmo o desdobramento lógico da coisa. E também se afirma que quaisquer queixosos representam o conjunto dos ofendidos - onde eles atestam esta representação? - e a exigência de um conjunto de instrumentos e, pior, uma cultura de controle e punição aos "excessos".

E por que tudo isso se justifica? Porque os atingidos são marginalizados pelo imperialismo (2) pela mídia reacionária e por imemoriais perseguições. Em nome disso ganham foros de legitimidade os apelos à censura assentada num "anti-imperialismo" relativista e multiculturalista que garante a cada grupinho barulhento - e aqui a única coisa lamentada é assassinar... - o direito de calar a livre expressão. Além, é claro de inflar o paternalismo condescendente para com os "frágeis", como se não fosse apenas deles, de sua força,  que pudesse vir a sua emancipação. O Charlie Hebdo fazia chorar porque não se enquadrou, e por isso era apenas um "departamento", alternativo, é verdade, da mídia reacionária, ou, no jargão tupiniquim, do PIG...  É calando que se promove a justiça social... Será mesmo?

É curioso que governos e movimentos islâmicos extremistas sejam extremamente misóginos e homofóbicos, assim como com quaisquer desviantes sociais, inclusive com outras religiões... É o caso de se perguntar: que contribuições o radicalismo islâmico deu à crítica da ordem capitalista e a um horizonte socialista? E também que os imigrantes aceitem plenamente a ordem capitalista, desejando apenas (e quantos realmente desejam? e o que desejam?) a preservação de um nicho “cultural”, que pode conviver muito bem com a cultura consumista. O mesmo pode ser dito dos movimentos centrados em questões específicas de “raça”, gênero ou opção sexual  desligados de lutas mais amplas e, por vezes, transformados em “astros” da grande mídia ou clientes do Estado. Ou seja, a única coisa que os incomoda é a liberdade de expressão?

A questão é irrecorrível. Não há como fazer conviver as duas opções: ou defendemos a liberdade de expressão ou nos rendemos ao relativismo multiculturalista. Ou enfrentamos a ordem capitalista no que ela é de fato, e discutimos as formas universais da organização da propriedade, do trabalho e da liberdade de expressão – sim, elas estão no mesmo nível de importância. Ou seremos coniventes com a ordem burguesa – e seus congêneres teocráticos ainda mais atrasados – e daremos primazia às supostas demandas identitárias e multiculturais com ela bem afinadas. A crítica ao imperialismo, incluindo aí a extrema-direita francesa, deve ser feita nos termos exatos de sua responsabilidade pela miséria criada, e não pelos falsos atalhos da censura e da divisão da sociedade em guetos que se encontram apenas nos, estes sim, inquestionáveis templos do mercado. O mercado e a propriedade são o "absoluto cultural"que ancora as relatividades periféricas e palatáveis.

Agora, ou somos “Charlie” – e tanto melhor se o acharmos “excessivo”, se algumas imagens nos incomodam, pois é nos extremos que se testa a liberdade de expressão – ou somos “Ahmed”... Até porque “Ahmed” pode ser “Charlie” – e muitos devem estar fazendo-o – e não o contrário... A bandeira revolucionária é a da tolerância universal e a liberdade de expressão deve ser dela patrimônio. É nossa tarefa separar o joio do trigo na indignação social, combater a exploração, o preconceito e as manipulações simplistas, que pretendem retirar o foco das questões de fundo. Eu sou “Charlie”!

2)  Ça faisait longtemps que Charlie Hebdo ne faisait plus rire, aujourd’hui il fait pleurer. http://quartierslibres.wordpress.com/2015/01/07/ca-faisait-longtemps-que-charlie-hebdo-ne-faisait-plus-rire-aujourdhui-il-fait-pleurer/

Comentários

Wlamir Silva disse…
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Wlamir Silva disse…
CONTINUAMOS SENDO CHARLIE PELA LIBERDADE DE EXPRESSÃO E CONTRA O TERRORISMO EXTREMISTA RELIGIOSO.

Pronto! Descobriram que o humor do Charlie Hebdo é "racista"! Pelo menos caiu por terra a separação infantil entre o humor "de direita" e covarde e o humor "de esquerda" e corajoso... Põe-se em perspectiva a questão de fundo: a liberdade de expressão". Pois, descoberto tal vício, já se lamenta que o Estado francês não tivesse censurado e criminalizado o jornal... Religiões podem ser alvo do humor cáustico, negros não... É, como se vê, a liberdade de expressão para o que não nos agride, no que não nos parece inaceitável... Repito: exatamente como pensam os extremistas muçulmanos... E para alguns o terrorismo não existe, talvez os cartunistas estejam vivos, como Elvis... Outros contrapõem o "somos palestinos" ao "somos Charlie", como se o extremismo religioso ultraconservador e terrorista fizesse algum bem à causa palestina! Bem, continuamos sendo Charlie. Continuamos defendendo a liberdade de expressão!