A RENOVAÇÃO ELEITORAL, A GELEIA GERAL BRASILEIRA E AS ESQUERDAS

Wlamir Silva
Professor
Historiador                                               

                                     Nani. chargeonline.com.br



As eleições de 2014 renovaram em 43% a Câmara dos deputados. Ao contrário do que muitos esperavam, após as “jornadas de junho” de 2013, a renovação ficou perto da média dos últimos 16 anos e abaixo da de 2010, de 46%. A modesta renovação, se deu na direção da  fragilização dos maiores partidos do país. O PT perdeu 18 deputados, o PMDB perdeu 5, o PSDB perdeu 10, o PP perdeu 4, o PSD perdeu 8. Alguns partidos médios cresceram um pouco, casos do PSB, que ganhou 10 deputados, ou do PTB, que ganhou 7 vagas.



O principal da “renovação” está nas pequenas novas legendas, como PROS e PEN, e especialistas apontam para uma pulverização e na consequente dificuldade de governabilidade. Segundo o analista político Antonio Augusto de Queiroz, diretor de Documentação do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), tal “renovação” resultou numa bancada mais conservadora[1]. A ascensão conservadora remete ao crescimento de “bancadas” religiosa, militar e ruralista, e a ícones como Russomano, em São Paulo, o deputado federal mais votado do Brasil, com mais de 1,5 milhão de votos, Bolsonaro (PR), no Rio de Janeiro, e Marco Feliciano, também por São Paulo. Os ícones, no entanto, não são pontos fora da curva, antes são manifestações mais evidentes de uma tendência.



Qual o significado político deste recuo, ou permanência? Um primeiro dado é a perda do influxo das manifestações de 2013, em especial em sua incapacidade de traduzir-se em alternativa política. Fato reforçado pelo segundo turno das eleições presidenciais, com a candidata da situação que apenas tolerou as manifestações e um candidato de oposição que pouco ou nada teve a ver com elas. O rumo das manifestações, com o seu esvaziamento e sua encampação simbólica pelos Black Bloc, em uma dialética complexa, explica em parte a sua limitação intrínseca. O vazio ideológico demonstrado, comemorado por muitos como exemplo de sua concretude e espontaneidade, acabou por chocar-se com um esperado conservadorismo popular. O sentimento de abandono material completou-se com a sensação de orfandade política.   



A orfandade política da massa da população jogou-a nos braços da política tradicional, cultivada com coerência pelos pequenos partidos que cresceram, mas também pela imensa maioria dos eleitos. Nada de posições ideológicas, nada de projetos políticos. Os que tinham um pé no poder expuseram a maneira como intermediaram e manipularam verbas públicas em favor de seu potencial eleitorado. Os novos mobilizaram “projetos sociais” filantrópicos, redes religiosas ou corporativas seguindo a mesma lógica, o assistencialismo, e mostrando serem bons “alunos” da política clientelista, aptos, pois, a “entrar na política”.



Outra parte da “renovação conservadora” veio de interfaces polêmicas como as GLBT ou da descriminalização das drogas. A cada manchete ou polêmica certos personagens devem exultar. Mas, sobretudo, origina-se da questão da segurança pública. Esta última alimenta há anos o deputado mais votado do país, Celso Russomano, e faz a interface para Jair Bolsonaro, o mais votado do Rio de Janeiro, alimentar a nostalgia da ditadura. Afinal, a segurança pública é a segunda maior preocupação da população[2], perdendo apenas para a saúde.



Fala-se, com ares catastrofistas, de uma onda conservadora, “de direita”. Em geral ela é associada a determinados ícones midiáticos, como os eleitos citados, mas também um sem-número de personagens que se veem alçados a lideranças de “extrema-direita”. Humoristas, roqueiros, apresentadores de TV, artistas de TV etc., são estigmatizados como tal. Além de anônimos pescados entre os milhões de navegantes em redes sociais, com declarações infelizes e quase caricaturais. O epíteto “fascista” é fartamente atribuído.



Aqui e ali se acham também estranhas conspirações reacionárias, sempre assinaladas com imagens fortes, ratos roendo bandeiras, punhais e chamas... Um marketing reverso do apocalipse, um protocolo dos sábios do Sião, um Plano Cohen às avessas... Outra vertente da psicologia reversa do apocalipse é aquela que insiste em trazer para o centro da luta política, em alguns casos mesmo a exclusividade, as questões identitárias, de “raça”, gênero e sexual, em especial a LGBT. Deste ângulo, o cerne do conservadorismo estaria no campo dos costumes. É claro que, deste ângulo, certas identificações anteriores da “direita” fazem pouco sentido. Neste campo, destacam-se as estereotipadas “paradas gay”, e chega-se a propor a censura de um programa “popular” por ser “racista” e “sexista”.



Será, no entanto, nestas manifestações da “direita” que se encastela o conservadorismo nacional que se manifesta eleitoralmente?  E o que seria este conservadorismo? Uma pesquisa de opinião do DataFolha, de 2012, em que pese o limite binários da mesma (ou isto ou aquilo) apontou dados interessantes[3]. Por ela 69% aceitavam o “homossexualismo”, 68% defendiam a proibição do porte de armas e 55% eram contra a pena de morte. Dados considerados como “tendências liberais”. Noutro sentido, 68% defendiam a diminuição da maioridade penal, ou seja, que “adolescentes que cometem crimes devem ser punidos como adultos, 83% eram contra a descriminalização das drogas, e 86% acreditavam que “acreditar em Deus torna as pessoas melhores”. Nos itens relativos às drogas e à religião, a posição mais conservadora aumentava entre os de grau de escolaridade mais baixa.



Outra parte da pesquisa é ainda mais instigante. No que se refere à importância dos sindicatos, 49% achavam que eles eram importantes, isso num quadro de franca decadência sindical. Dentre os que ainda defendiam os sindicatos, era maior a porcentagem (53%) entre os de renda familiar de “até 2 salários mínimos”. No item sobre a pobreza, 61% criam que ela estava “ligada à falta de oportunidades iguais”, percepção aumentada entre os de renda mais baixa, e apenas 37% à preguiça... Descontando-se o já citado raciocínio binário, do qual se exclui o esforço pessoal, poder-se-ia apontar para uma percepção de “esquerda” da estratificação social.



No item relativo à criminalidade, no qual se imbricam a percepção moral e de costumes com a questão social, 58% viam como a maior causa da criminalidade “a maldade das pessoas”, principalmente aos das faixas de renda de até 5 salários mínimos (60%), contra 39% que apontaram “a falta de oportunidades iguais”. Dentre os que preferiram a explicação pela desigualdade, a grande maioria estava nos níveis de renda de 5 a 10 salários mínimos (47%), e de mais de 10 salários mínimos (56%). A relação com a criminalidade não nos surpreende. São os mais pobres que sofrem o pior da violência e são também eles que, reconhecendo o peso da desigualdade das oportunidades, não o relacionam diretamente ao crime, mediando-o com a “maldade das pessoas”. Isto explica em parte o apelo de certas candidaturas, explica também o fato de que as criticadas UPPs tenham sido tema central das eleições do Rio de Janeiro, defendidas pelos três candidatos mais votados, a despeito de justas críticas, e, em parte, pelo fato destas críticas ignorarem aspectos da questão da segurança muito presentes nas demandas da população.



O vazio político percebido pela população desde há muito apenas foi reforçado pelo anticlímax do refluxo das manifestações. Como não há quem represente ou ponha em questão de fato a ordem estabelecida, buscam na velha política clientelista, do tráfico de influências e da indistinção do público e do privado, os paliativos para os seus males. Males naturalizados, vistos como parte inalterável do horizonte social. Qualquer obra é boa, qualquer medida compensatória é válida, qualquer programinha social é bem vindo diante da penúria generalizada. E a mais que naturalizada corrupção, forma como se mostra à população um Estado colonizado por bancos, empreiteiras e outras corporações em sua forma patrimonialista, parte da imutável paisagem.



É sintomático que não atinemos para os pedidos de socorro contidos na tímida esperança depositada nos sindicatos, ou na percepção da falta de oportunidades. Ficamos diante disso limitados à simbólica proclamação de nossas intenções históricas e slogans feitos para uso interno. E que parte delas se apresse em pôr no centro da luta política questões identitárias, como se houvesse uma identidade entre certo conservadorismo de costumes e reacionarismo político, como se entre os 63% que criticam a falta de oportunidades e os 53% que clamam por sindicatos não houvesse quem repudia o “homossexualismo” ou deseja a redução da maioridade penal... O estigma de “fascista” atinge, aqui e ali, trabalhadores de posição variada e os empurram para os braços de reacionários que jogam, por conveniência, o mesmo jogo.



O caso da criminalidade é ainda mais significativo. O posicionamento de parcela significativa dos trabalhadores de separar a falta de oportunidades da opção criminosa deveria servir como alerta ao discurso que opõe com uma obtusa simplicidade o oferecimento de oportunidades (em geral por meio da educação) e a segurança pública, o policiamento demandado, sobretudo, pela população de menor renda. Isso sem falar na parcela que vê na criminalidade um fator “revolucionário”, o que já é uma afronta à classe trabalhadora, além de grave miopia política. Enquanto isso, ícones diversos do reacionarismo se deleitam com os votos oriundos do desespero dos que são cotidianamente expostos à violência.



Além, é claro, dos autointitulados “de esquerda” e congêneres que se alinham ao poderoso eixo da manutenção do status quo, temperado com programas compensatórios (parte deles, claro, coerentemente relacionados às demandas identitárias), sob a receita do Banco Mundial, e das corporações do grande capital. Mantendo e reforçando os mecanismos da política tradicional que, por sua vez, resguarda as formas mais perversas da exploração do capital. Também eles absorvem e comemoram o deslocamento da política das questões do capital e do trabalho para a periferia identitária, transformando-a, inclusive, na falsa dialética de “ricos e pobres”. Também eles manipulam ao sabor de suas necessidades, as supostas identidades e oposições, como na recente caçada aos “evangélicos”.



A “renovação eleitoral” e a fragmentação apontada é mais do mesmo, apenas o fato de que a resistência da geleia amorfa animou pequenas ambições políticas. Afinal, quando a pequena política revela o quadro geral animam-se as mediocridades. O mesmo vale para os personagens midiáticos que vivem das contradições mais bizarras do sistema – do descentramento das questões políticas, da caricaturização das “esquerdas”, da violência e da exagerada e autonomizada questão LGBT –, e se tornam também os falsos adversários ideais de uma esquerda sem Norte. É a mera renovação da geleia geral brasileira. É a deliberada construção e reconstrução de uma sociedade civil convenientemente gelatinosa.

O enfrentamento da complexidade destas questões, para além dos slogans e da busca por simpatias de ocasião, deve ser o Norte de uma esquerda que pretenda romper com este quadro. A posição firme pela tolerância no campo dos costumes, com uma postura pedagógica e sem estigmas frente à população em geral, sem se diluir em demandas e construções de identidade. A consideração da segurança pública, sem perder a perspectiva de sua dimensão “social”, mas sem reduzi-la a isto, buscando equacionar esta demanda premente da classe trabalhadora. E, sobretudo, aprofundar a discussão política com vistas a uma leitura que medeie a utopia e as conjunturas, entre os horizontes mais distantes e as questões imediatas. Um longo caminho, no qual não há atalhos, só desvios.





[1] http://www.ebc.com.br/noticias/politica/2014/10/analista-do-diap-diz-que-renovacao-da-camara-dificultara-a-governabilidade

[2] http://oagenteprincipal.wordpress.com/2014/03/16/o-brasil-pelos-brasileiros-qual-e-o-maior-problema-do-pais/


[3] http://www1.folha.uol.com.br/poder/2012/12/1206138-tendencia-conservadora-e-forte-no-pais-diz-datafolha.shtml

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