QUANDO O COMUNISTA PORTINARI FOI CENSURADO PELO MOVIMENTO NEGRO, OU A CENSURA ESTATAL-PRIVADA SOB O MANTO DO SINDICALISMO COOPTADO E A POLÍTICA IDENTITÁRIA

Wlamir Silva
Professor
Historiador


Alguns companheiros, alunos e amigos acham exagerada nossa preocupação com a divisão dos trabalhadores e popular em identidades “raciais”, de gênero e opção sexual e seus reflexos que, de forma simplista e tacanha, chegam até as raias da discriminação e da censura. Talvez tenham alguma razão. Comentamos aqui um caso documentado e seus desdobramentos, com o fim de esclarecer algumas coisas.

Em 2007 deparamo-nos na rede com a notícia que dizia o seguinte: “Coletivo da Igualdade Racial da APP-Sindicato consegue alterações em livro didático”. O sucesso é atribuído ao “Coletivo Estadual de Promoção da Igualdade Racial na Educação da APP-Sindicato e a Associação Cultural de Negritude e Ação Popular (Acnap)” e foi “colhida” no sítio da CUT do Paraná. A APP é o Sindicato dos Trabalhadores em Educação Pública do Paraná, filiado à CUT, a ACNAP é a Associação Cultural de Negritude e Ação Popular. Tudo realizado por meio do Ministério Público Federal*.


 O motivo da ação foi o do livro em questão conter “conteúdo negativo sobre a participação do povo negro na história do Brasil”. Não atendendo a preceitos de uma lei federal e de um parecer estadual. A editora privada fez um acordo e realizou as mudanças exigidas no livro. A gerente editorial foi categórica: “achamos legítima a defesa do movimento negro. A nossa atitude é a de não compactuar com o preconceito e com visões estereotipadas, por isso nos mobilizamos para que as alterações fossem feitas”. Um militante da APP elogiou o novo conteúdo, com a “valorização sobre a contribuição do povo negro na sociedade brasileira”.

Segundo o denunciante, “[o] que inicialmente chamou a nossa atenção é o exagerado número de imagens [...] em que pessoas negras aparecem em situação degradantes, de submissão, humilhação e maus tratos” e “em particular, a que nos chocou, chama a atenção por ser uma ilustração em que crianças estão acorrentadas pelo pescoço, demonstrando desespero e agonia”. Como sabemos, a violência e os maus tratos sob a escravidão são uma questão controversa. Os que não a mostram já foram acusados de edulcorar a escravidão. O denunciante queixoso preferiu ater-se, ou mesmo reduzir, a questão da autoestima negra. Outra acusação foi a da repetição do termo escravo(a), e de sua intercalação com “negros” e “africanos”, fazendo com que “as crianças acreditem que “‘negros’, ‘africanos’ e ‘escravos’ são sinônimos”. Lembre-se de que se tratava de um texto sobre... escravidão.

Mas são esclarecedoras duas mudanças a mais que foram exigidas: “[a] retirada da obra Cana, de Candido Portinari e o título que abre o capítulo”. O título censurado era “Para o trabalho nos canaviais vieram os africanos”. Para os militantes do movimento negro “os africanos, diferentemente dos imigrantes, não vieram, mas que foram capturados e trazidos da África”... Difícil compreender como o verbo “vieram” implicaria a forma da vinda... Mas é da outra exigência que vamos tratar mais aqui.

Exigiu-se a retirada da pintura “Cana” de Cândido Portinari. O pintor comunista Cândido Portinari tem vasta obra e uma parte significativa dela dedicada a figuras de trabalhadores, em fábricas, plantações de café e canaviais. Boa parte destes trabalhadores são negros e mestiços. O quadro “Cana”(veja o quadro abaixo) mostra trabalhadores negros ou mulatos cortando e carregando fardos de cana. Ou seja, o trabalho é que é classificado como situação degradante e de submissão... a ponto de ser exigida a sua sumária retirada. Perguntamo-nos: que imagens elevariam a autoestima negra? Que versão da história o faria? 



A “revisão de conteúdo”, segundo o Promotor Público, foi estendida a todas as coleções do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), com base “nossa contribuição crítica” (nossa de quem?). Isso com base em pressões do Estado e da resiliência das editoras privadas. Este binômio estatal-privado, açulado por grupos minoritários alimentados pelo Estado e sindicatos atrelados censuram e obrigam autores e professores a uma determinada versão da história. Versão destinada a alimentar a autoestima negra, mesmo que à custa de uma aproximação maior com a realidade histórica.

Estas histórias ou versões tem seus defensores. Segundo o historiador pós-moderno Keith Jenkins, são as “histórias com grife”, feitas para atender a demandas específicas: “relatos históricos para crianças , relatos da memoria popular, relatos de negros brancos, mulheres, feministas, homens, relatos de herança cultural, relatos de reacionários, elites, marginais”. Isso porque para estes historiadores não há objetividade no conhecimento histórico e, muito menos, perspectivas de mudança global da sociedade. As “histórias de grife” são mero conformismo e sua lógica “democrática” deve ser, como observa outro pós-moderno, “privatizada”[1].

Para o historiador marxista Eric Hobsbawm não basta esta história de identidade, mítica, relativista, é preciso que ela busque a universalidade e a supremacia da evidência: “Uma história que seja destinada apenas para judeus (ou afro-americanos, ou gregos, ou mulheres, ou proletários, ou homossexuais) não pode ser boa história, embora possa ser uma história confortadora para aqueles que a praticam”[2].

Não, este não é um caso isolado. Ele, como aponta o Promotor envolvido, foi estendido a todas as coleções. A exclusão de Portinari resume o grau e o viés da revisão imposta. A política governamental eleitoreira tornando-se somada ao puro interesse privado das editoras - vale dizer: o mercado - se impõem a autores e professores, que têm de escolher entre estes livros “corrigidos”, tudo sob os auspícios de um sindicalismo atrelado. É censura estatal-privada e, mais ainda, a imposição de uma versão identitária da história aos profissionais da área, sem compromisso com a objetividade do conhecimento.

Enfim, isso vale para outras áreas do conhecimento e às artes e à cultura em geral. Quem define além de seus criadores a versão “adequada”? Quais são os donos da chave do conhecimento ou estética positiva? Quem vai nos pregar antolhos para os tão complexos e diversos caminhos do conhecimento e da linguagem? O que é ingrediente da emancipação humana, a riqueza do conhecimento e das manifestações estéticas ou seu controle? Por isso preocupamo-nos, e muito, com a liberdade de expressão e a sua defesa contra demandas identitárias mais ou menos intolerantes.


* Veja:  http://www.fetecpr.org.br/coletivo-da-igualdade-racial-da-app-sindicato-consegue-alteracoes-em-livro-didatico/
[1] Ver JENKINS, Keith. A História Repensada. São Paulo, Contexto, 2001, e ANKERSMIT, Frank R. Historicismo, pós-modernismo e historiografia. In: MALERBA, Jurandir et alii (orgs.). A escrita da história. São Paulo: Contexto, 2006.
[2] HOBSBAWM, Eric. Não basta a história de identidade. In: Sobre História . São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

Comentários