Wlamir Silva
Professor e historiador
No domingo passado voltamos, eu, minha esposa e minha cachorrinha, a um restaurante onde trabalha como garçonete uma jovem de uns 20 anos que já conhecíamos. De novidade ela contou que terminou o curso de auxiliar de enfermagem e que já estava trabalhando em um posto de saúde local, sendo garçonete agora apenas aos domingos e deixando o sábado de folga. Já na segunda-feira, passeando com a cachorrinha pelo centro a encontramos novamente, em frente a um cursinho preparatório privado. Perguntada se estudava ali, ela comentou baixinho e sorrindo: sou péssima em matemática...
A jovem de origem
pobre é determinada e esforçada. Talvez nem saiba que paga o preço de um
sistema educacional fajuto, que, além das carências estruturais conhecidas,
destina gente como ela à farsa da “educação para a cidadania”. Na qual o
conteúdo é dispensável e restam as futuras acomodações das ações afirmativas.
Talvez saiba, mas prefira não chorar o leite derramado. Sua tenacidade e mérito
pessoal tenta passar olimpicamente sobre as mazelas. Talvez sua elegância
pessoal – a educação que não é instrução e nela é impecável – a faça preferir
dedicar-se a buscar seu caminho de cabeça erguida.
Ainda com aquele
exemplo na retina li, com atraso, um artigo escrito por Marcus Faustini,
diretor
teatral, documentarista e escritor, no Globo
de 27 de julho, intitulado O nem nem é
tem tem. Como se sabe, os nem nem
são aqueles jovens que não estudam nem trabalham. Que são, diz o autor, 30% dos
jovens do Estado do Rio de Janeiro, e, segundo o IBGE, um quinto dos jovens
brasileiros. O autor clama por políticas públicas que “garantam
direitos e promovam o desenvolvimento da vida da juventude”. Os nem nem são para ele um “quadro
estruturante” e nele a maioria seria de mulheres, pelo quê ele reivindica que
seja também uma politica de gênero. Será que nossa primeira personagem sabe
disso?
Tais políticas, uma verdadeira reforma do Estado, avança ele, deve fugir do que chama de “senso comum de um pensamento de direita”, “que acredita que o desenvolvimento só se dá com meritocracia e ordem, sem considerar o direito à igualdade de oportunidade”. Mas também do que chama de “caricato pensamento que reivindica o lugar de esquerda, que só pensa o jovem como alguém a ser conscientizado”. A caricatura esquerdista reduziria o jovem a um “reprodutor de discursos sem singularidades”. De uma penada, o articulista descarta o mérito pessoal, condicionando-o à igualdade de oportunidades que, assim, se torna um mítico ponto de partida, e a conscientização política, reduzida in totum a discursos prontos e impostos. Que amarras terríveis enfrenta e supera – talvez por não sabê-las – a jovem auxiliar de enfermagem, garçonete e estudante!
Tais políticas, uma verdadeira reforma do Estado, avança ele, deve fugir do que chama de “senso comum de um pensamento de direita”, “que acredita que o desenvolvimento só se dá com meritocracia e ordem, sem considerar o direito à igualdade de oportunidade”. Mas também do que chama de “caricato pensamento que reivindica o lugar de esquerda, que só pensa o jovem como alguém a ser conscientizado”. A caricatura esquerdista reduziria o jovem a um “reprodutor de discursos sem singularidades”. De uma penada, o articulista descarta o mérito pessoal, condicionando-o à igualdade de oportunidades que, assim, se torna um mítico ponto de partida, e a conscientização política, reduzida in totum a discursos prontos e impostos. Que amarras terríveis enfrenta e supera – talvez por não sabê-las – a jovem auxiliar de enfermagem, garçonete e estudante!
Além disso, conforme
diz o sr. Faustini, deveria temer “a naturalização das deliberadas mortes de
jovens negros [...] na guerra às drogas”. Como é ingênua nossa singela personagem...Mas,
talvez ela tenha mesmo algo a temer neste país violento. No mesmo domingo em
que a reencontramos, num passeio à noitinha com a cachorrinha no mesmo centro,
temos a oportunidade de cruzar com o “rolezinho” de jovens com bonés virados
para trás, com roupas e tênis cuidadosamente arrumados para parecerem com os
habitantes de guetos estadunidenses. São barulhentos e mal-educados, tratam-se
aos empurrões e cabeludos palavrões, os quais também dirigem às meninas
passantes. Vários andam em bandos e alguns utilizam jaquetas da mesma cor, como
a sugerir gangues. Caminham gingando e olham ameaçadoramente. Sim talvez ela
tenha mesmo algo a temer...
Prestamos especial
atenção, pois a presença de pessoas de mais idade, assim como a cachorrinha bem
tratada, para alguns deles é um acinte, passível de agressão. Somos para alguns
deles a “elite branca”, expressão popularizada por imbecis de várias extrações,
e, de certa forma, “devedores sociais”. Afinal, dois professores que reúnem quase
60 anos de trabalho e que aparentam “riqueza” (a cachorrinha de roupa!) são alvos
deste arremedo de luta de classes. E, claro, rapers, funkeiros e
jogadores bilionários, assim como corporações empresariais, que fabricam
magicamente os seus objetos de adoração e consumo, são parte da paisagem...
Para
o sr. Faustini a juventude recebe bem as ofertas da sociedade, o que ele chama
de “convocações narrativas”, seja lá o que isso queira dizer. Formas engajamento “social, cultural, político
ou religioso, até a experimentação comportamental [...] mediada hoje pelo
consumo”. Assim como à “indústria do entretenimento, do discurso empreendedor,
e até mesmo à sedução do mundo marginal”. Do “do outsider viajante à inserção
no aparente sedutor mundo de pequenos crimes”. A generalidade e a imprecisão dos
engajamentos são sintomáticas, mais ainda é o fato de que esforços como a da
jovem que abriu nosso texto, o trabalho e a escola, não façam parte deles...
Para
ele, devemos à juventude brasileira “a [...] consolidação da cultura digital no
país, o passinho do menor, a invenção dos mototáxis, o frescor dos coletivos na
cultura, na moda e no urbanismo etc etc”. Baseado neste mix de dívidas e contribuições, o sr. Faustini propõe, com a
sugestão de uma jovem da Rocinha que “quicava nos agudos e nos pés”, que os nem nem se tornem os tem tem... ou seja “tem desejos, tem
tempo pela frente pra mudar!”. Vamos com facilidade do mito – a adesão à tecnologia
informática vira ação cultural e o trabalho precarizado de transporte vira
invenção –, para a tal singularidade lá em cima oposta aos “discursos
reproduzidos”, o que caracteriza estes jovens é uma cultura, o exemplo da moda,
o passinho, é explicativo. Mais
significativo é o que dá sentido a tudo aquilo: o consumo.
Não
sabemos se a jovem auxiliar de enfermagem, garçonete e estudante gosta do passinho, ou de funk, ou de rap... De
fato, aqui isso não importa. Importa que isso não a define. É bem provável que
ela não veja com naturalidade a “inserção no aparente sedutor mundo de pequenos
crimes”. Pela experiência docente de muitos anos, também é provável que ela tenha
tido sua vida escolar prejudicada por personagens semelhantes aos cultivadores
da estética da violência e da marginalidade que gingam ameaçadores pela rua
principal da cidade. Com certeza, com
base em sua própria narrativa, não obteve seu crescimento em “coletivos
culturais”, mas sim “capinando” entre os escolhos de um sistema público de
educação em frangalhos e incursões num sistema privado que, não obstante suas
limitações, não lhe nega “conteúdo”.
Não
que a cultura e o lazer não sejam importantes. Não que não se possa gostar de
uma ou outra forma estética, ainda que nos pareça que se intenta uma exagerada
homogeneização e se negue tanto a importação cultural como a ação da mídia que a
promove. Mas é uma cruel falácia que isso vá salvar os nem nem... E aqui há que se reparar uma injustiça do autor. A de
que a direita enjeite os nem nem, e a
de que a esquerda os queira conscientizar... A direita de verdade já os equacionou
como restos do sistema, e dará a eles pão e circo na medida exata da manutenção
de seu conformismo, o que disso sobra justifica um útil aparato repressivo. A esquerda
parece determinada a tratá-los como vítimas e como portadores de uma identidade
cultural essencial, homogênea e imutável, com signos culturais “naturais”, como
o funk e o rap, e uma inexorável, mas respeitável, tendência à criminalidade. Em
ambos os casos, são negados ao jovens oriundos da classe trabalhadora o mérito
pessoal. Para a direita eles são incapazes de tê-lo, para tal esquerda o
indivíduo não existe e, assim, o esforço pessoal é coisa de burguês...
As
esquerdas não chegam à nossa jovem auxiliar de enfermagem, garçonete e
estudante. Nem a milhares, milhões, como ela. Procuram em adolescentes bocós ou
mesmo no restolho social aqueles que entendem como mais avessos à sociedade de
mercado. Afastam-se do mundo do trabalho e buscam suas bases sociais nos que,
tristemente, mais estão afogados no consumo* ou mesmo no preguiçoso, acanalhado e
covarde lumpemproletariado. Reforçam mesmo tais vícios sociais, justificando-os.
Alguns até ensaiam demagógicas identidades “culturais”, buscando atalhos pela
suposta homogeneidade cultural, construída, aliás, pelo mercado que eles pensam
combater. Como se a crítica e a militância emancipatória pudesse ser definida
pelo que se ouve, vê ou dança...
Torçamos
pela nossa jovem auxiliar de enfermagem, garçonete e estudante e pelos seus
muitos iguais. Que eles não sejam tragados pelo consumismo exacerbado,
convencidos a esperar em berço esplêndido esmolas “sociais” ou busquem por
necessidade “coletivos culturais”. Que não sejam enredados por paternalismos ou
arapucas como ProJovens, cotas e ProUnis. Quem sabe um dia eles não venham a
ensinar a nossas esquerdas que é no mundo do trabalho e da luta por melhores
condições de vida, onde o esforço e o mérito pessoal não são miragens ou
slogans, que se encontra a chave da emancipação da classe trabalhadora.
Esperar
a igualdade de oportunidades para que nossos jovens tenham vidas dignas, apesar
de difíceis, e formem uma classe trabalhadora capaz de promover a sua própria emancipação
é alimentar um círculo vicioso reacionário. Entender que as dificuldades
justificam a inércia e, mesmo, a criminalidade, de setores da juventude é
afastar-se da classe trabalhadora. Dispersar a luta política por grupos
definidos por presumidas características culturais essenciais – assim como por
cor, gênero, opção sexual etc. – é abrir mão da organização do coletivo que
interessa: o da classe trabalhadora.
*Mesmo que entre os participantes haja trabalhadores é noutro sentido e contexto que eles são buscados.
*Mesmo que entre os participantes haja trabalhadores é noutro sentido e contexto que eles são buscados.
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