A GRATIDÃO CLIENTELISTA DO LULISMO E TODOS NÓS...

     Wlamir Silva
     Professor e historiador

      Uma nota publicada no Facebook do PT em 7 de agosto intitulada Abalada de Eduardo Campos é digna de destaque. Ela não está mais lá, é claro, depois do acidente trágico*. Não temos, no entanto, motivos para duvidar de sua autenticidade, inclusive por ter sido referida muito antes pelo Diário de Pernambuco**. Nela, que é apócrifa, cada vez mais comum no Lulismo, além da cantilena da conspiração da mídia e de outras barbaridades, há a seguinte consideração:

"Beneficiário singular da boa vontade dos governos do PT, de quem se colocou, desde o governo Lula, como aliado preferencial, Campos transformou sua perspectiva de poder em desespero eleitoral, no fim do ano passado.
[...]
      Eduardo Campos é o resultado de uma série de medidas que incluem a disposição de Lula em levar para Pernambuco a Refinaria Abreu e Lima, em parceria com a Venezuela, depois de uma luta de mais de 50 anos. Sem falar nas obras da transposição do Rio São Francisco e a Transnordestina. Ou do Estaleiro Atlântico Sul, fonte de empregos e prestígio que Campos usou tão bem em suas estratégias eleitorais
     Pernambuco recebeu 30 bilhões de reais do Programa de Aceleração do Crescimento, o PAC, do qual a presidenta Dilma Rousseff foi a principal idealizadora e gestora.
     O estado também ganhou sete escolas técnicas federais, além de cinco campi da Universidade Federal Rural construídos para melhorar a vida do estudante do interior.
     Eduardo Campos cresceu, politicamente, graças à expansão de programas como Projovem, Samu, Bolsa Família, Luz para Todos, Enem, ProUni e Sisu. Sem falar no Pronasci, que contribuiu para a diminuição da criminalidade no estado, por muito tempo um dos mais violentos do País.
     Campos poderia ser grato a tudo isso e, mais à frente, com maturidade e honestidade política, tornar-se o sucessor de um projeto político voltado para o coletivo, e não para o próprio umbigo".



      Nem aqui entramos no mérito de se eles realmente acreditam que está realmente ocorrendo tal "revolução" no país, que patina em infraestrutura, saúde e educação e se desindustrializa. Ou do caráter falso e eleitoreiro de programas como o Projovem.
       Chamamos a atenção para o fato de que tal texto só pode comportar duas leituras: 1) ninguém pode ser candidato de oposição à candidata governamental, pois todos deviam ser "gratos" pelas ações do governo federal. 2) o governador de Pernambuco foi privilegiado - "beneficiário singular"...- com investimentos e programas e, por isso, devia ser grato... Por que Aécio Neves não deveria ser grato?
      Conhecemos bem o modus operandi do governo. O vemos de perto em âmbito municipal e nas universidades. Verbas devidas e demandas legítimas são tratadas pelo método da chantagem política. Por meio dela se impõem políticas e se costuram mais ou menos complexas articulações eleitorais. Trata-se do velho e mau clientelismo, do patrimonialismo que, confortavelmente associado ao capital - apesar e por causa dos falsos discursos -, se renova e se justifica.
      O texto do PT (ainda existe um PT?) Lulista faz o elogio ao filhotismo e ao clientelismo. A referência à "boa vontade" do governo é por si esclarecedora. Mais ainda, grava com requintes de cinismo, como no lombo de um boi, a palavra GRATIDÃO. Política é gratidão ao concedido. Mas a gratidão - virtude privada - é em política a máscara cínica do autoritarismo e o freio ao enfrentamento de questões de fundo. Como bem observava o geógrafo Milton Santos:


"O clientelismo é um elemento não-cidadania, porque distorce a orientação eleitoral, afastando o indivíduo da meta da consciência possível e, portanto, afastando a sociedade da possibilidade de uma autêntica representação. O clientelismo suprime a vontade, já que com ele o direito real de escolher é deferido a um outro. Em nome de virtudes cardeais, com a gratidão e o reconhecimento, há uma renúncia efetiva à responsabilidade".

      Como dissemos, conhecemos de perto as práticas, e no ambiente aparentemente insuspeito  da universidade. Na qual as ameaças de penúria material e isolamento por ousar pensar ou candidatar-se são não só acompanhadas das mais baixas formas de manipulação como também do discurso de que devemos ser "gratos" pelo concedido, sejam construções, expansões ou, mesmo, nossos empregos... E se isso funciona na universidade, podemos imaginar o quanto isso importa para o país imerso em tantas carências materiais e culturais.
       Não é então aleatório que Eduardo Campos tenha sido o único dos presidenciáveis, ao lado de Marina Silva, a levantar em discurso público a questão do peso "do clientelismo, do fisiologismo e do patrimonialismo" e da necessidade de "dar um salto de qualidade na política [com] uma concepção de Estado, de coisa pública, de bem comum" (retirado do programa dos candidatos, mas que esteve presente em declarações públicas).
       Também é evidente que sua imersão no sistema político, inclusive na crença de que Lula estava "mudando o país", ponha em questão o quanto estivesse disposto a discuti-lo, e sobretudo, de dar passos no sentido de rompê-lo. Mas a própria disposição foi um fato político. E a perspectiva da candidatura de Marina Silva, com menores compromissos históricos com a política tradicional, pode contribuir com isso.
      Campos devia ser grato por ter sido privilegiado. E serão privilegiados todos os que forem gratos. No limite, mesmo os adversários podem contar com tal "solidariedade" desde que não rompam a lógica do sistema. A partir das bases aí estabelecidas compreendem-se as estranhas alianças e as identidades entre alguns aparentemente diferentes. Não o são... são iguais. Como mostra Milton Santos, tal lógica é uma renúncia à responsabilidade política. Esta foi a cobrança feita pelo esbirros lulistas a Eduardo Campos, esta é a cobrança que fazem a todos nós...
      Como tal lógica esmera-se em se impor a todos nós, é justamente dos que não estão imersos no cipoal de favores, concessões, cargos de confiança etc. que se pode esperar a crítica à lógica dominante. Pondo em perspectiva a sua superação. Ou a naturalizamos? Ou a suportamos em troca de paliativos que só eternizam as desigualdades e as tragédias sociais mantidas pela concentração de poder e a sua intrínseca incapacidade de promover mudanças significativas na sociedade?
       Ou ainda, numa perspectiva supostamente revolucionária ignoramos estas questões considerando-as "burguesas" ou "weberianas", destinadas a serem superadas numa epifania socialista? Em direção à qual se ignora o longo caminho a percorrer e os tantos a serem convencidos... Isso, inclusive, diante da experiência socialista que - sem sequer a propriedade privada - permitiu a criação de redes de tráfico de influências e privilégios, impedindo a democracia  radical que deveria ser buscada e, com a crise do sistema, originando os bilionários da atual Rússia e Leste Europeu...
       Ignorar é, como vimos,renunciar a uma responsabilidade.

* Uma busca no Google com o título A balada de Eduardo Campos leva ao endereço do PT no Facebook...
**  http://www.diariodepernambuco.com.br/app/noticia/politica/2014/01/07/interna_politica,483237/pt-publica-nota-oficial-com-o-titulo-a-balada-de-eduardo-campos.shtml

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