Wlamir Silva
Doutor em História
Professor da Universidade Federal de São João
del-Rei
Wlamir-silva@uol.com.br
Desde meados da década passada viemos
alertando para o caráter segregacionista e discriminatório da política de cotas
raciais. As pressões sobre as universidades para sua adoção, a Lei que hoje
as obriga, encaminhada a sua extensão às pós-graduações e, hoje, a iminente aprovação
delas para concursos públicos, assim como a crítica à mestiçagem e a afirmação
de uma "cultura negra" acumulam-se no tecido social brasileiro. Com
elas as odiosas formas de classificação racial e discursos virulentos contra as
"classe média branca", "elite branca" ou uma "fétida
elite branca" se alastram mais ou menos silenciosamente pela sociedade
brasileira.
Bem recentemente, vemos manifestações
racistas em estádios de futebol no Brasil. O futebol, e seus espaços, é
considerado, justamente, como significativa metáfora da sociedade brasileira. O
que significam estas manifestações em espaços ainda tão representativos de
parte importante - não obstante a elitização das novas "arenas"? São
estertores do racismo? Estertores que se animam a surgir em meio à multidão?
São parte do racismo que sempre houve? Então por que só agora se manifestam de
forma tão crua? Ou serão reflexos da racialização promovida pelo Estado
associado a grupos de pressão minoritários, reforçando um racismo
historicamente em declínio desde meados do século XX?
Este texto teve como inspiração o comentário de um velho e respeitado cronista esportivo, o jornalista Fernando Calazans, comentando indignado tais manifestações, em sua coluna do último nove de março:
“E me espanto porque quem estreou nas
arquibancadas no fim dos anos 1950 – como eu – e que prosseguiu nos estádios
como torcedor e depois como jornalista, durante toda a segunda metade do século
XX, não poderia mesmo imaginar que a violência do racismo viria nos assombrar
desta forma no século XXI.
[...]
E, chegando ao ponto crucial destes últimos
dias, não me lembro em nenhum jogo do velho maracanã a que assisti, uma ofensa,
uma agressão física ou verbal, a um jogador do time adversário, por ser...
negro. Não que me lembro [sic]. E, se tivesse assistido a alguma manifestação
racista, garanto que não esqueceria”.[1]
Calazans
aponta, com razão, para o que ele chama "perda de civilidade" da qual
a violência que ocorre no futebol seria também uma amostra. Isso por si só já
vale outra reflexão: por que se torna mais violenta e incivilizada na última
década uma sociedade da qual se diz haver grandes avanços sociais? Mas
destacamos aqui as extemporâneas manifestações racistas. E aqui um dado
interessante, o cronista usa como marco divisório o "novo maracanã",
que se constituiu desde meados da década passada, primeiro com obras de
modernização, depois com a destruição do velho templo e a construção de
outro...
As
obras "novo maracanã" coincidem com a generalização das cotas nas
universidades e com a Lei Federal que as tornaram obrigatórias. Sua reabertura
em 2013 veio acompanhada dos novos planos de extensão das cotas para
pós-graduações e concursos públicos. E do discurso contra a "elite
branca"[2],
designação genérica que classifica como herdeiros dos grandes proprietários
escravistas, e portanto devedores históricos, todos os brancos e justifica suas
exclusões pontuais de vagas de universidades e, num campo mais sensível e de
repercussões imprevisíveis, no mundo do trabalho. Qual é o impacto das cotas e
do discurso racialista neste revival racista?
As cotas não têm eficácia social. Não impediram que nos EUA tenham
a imensa maioria negra desempregada, subempregada ou nas prisões (os negros,
que são 13% da população somam 35,5%, contra 1,7 % de hispânicos e 0,7 % de
brancos). Nas universidades são um engodo, pois dos escolares brasileiros bem
menos da metade concluem o ensino médio e o ensino é péssimo, inviabilizando a
formação. Para os 40% mais pobres as cotas são uma miragem. E são uma boa forma
de justificar o descompromisso com o ensino básico e com a melhoria das
condições de vida da classe trabalhadora, mascarando as reais contradições
sociais. No mundo do trabalho, onde se esfumam as justificativas de transitoriedade e formação, e perde sentido o eufemismo das "cotas socais", atingem seu ponto mais grave, influindo mais diretamente na luta pela vida e recrudescendo as tensões classificatórias e segregadoras, ou alguém acha que ali serão aceitas as simples autodeclarações?
Se as
cotas não produzem igualdade social ou “racial”, produzem a classificação e a
segregação, dividindo a classe trabalhadora. Em que medida a promoção do
ultrapassado conceito de "raça", a dupla discriminação de brancos
trabalhadores, as tensões trazidas pelos subjetivos critérios classificatórios [3] - numa sociedade fortemente
mestiça - influenciaram este racismo extemporâneo? É possível utilizar controladamente a discriminação racial? O que a silhueta observada sob a tênue casca da maior metáfora nacional nos mostra das entranhas da sociedade? É hora de combater duramente
o racismo e também de submeter à crítica políticas supostamente
"populares", demagógicas, mistificadoras das contradições sociais e divisoras da
classe trabalhadora, alimentando em seu seio as mais odiosas formas de discriminação e ódio.
[1]
http://www.geledes.org.br/areas-de-atuacao/educacao/cotas-para-negros/1689-elite-branca-reage-contra-cotas-para-negros-na-unb; http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Midia/O-porque-do-%27cansaco%27-da-elite-branca/12/13543; http://www.brasildefato.com.br/node/11028.
[2]
Fernando Calazans. A engrenagem do ódio. O
Gobo, 9.3.2014.
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