Wlamir Silva
Doutor em História
Professor da Universidade Federal de São João
del-Rei
Wlamir-silva@uol.com.br
Texto escrito em 2010.
Texto escrito em 2010.
A União da juventude comunista apresentou no 58° Conselho Nacional de
Entidades Gerais da União Nacional dos Estudantes, em abril de 2010, um
manifesto em que defende a chamada Universidade
popular. Esta sinalizaria, segundo os jovens e aguerridos companheiros,
para um “projeto estratégico de universidade que rompa com a
lógica mercadológica da educação, a divisão excessiva do saber, e realmente
aprofunde a participação e diálogo da produção de conhecimento com a
sociedade”. Projeto que se contraporia ao modelo de universidade burguês
existente.
A
palavra de ordem é sedutora: quem é contra o povo na universidade? E o
diagnóstico é em muitos aspectos preciso: a Universidade jaz sob o consenso
burguês vigente em nossa sociedade. Por que, então, a idéia de levar o povo, ou
os “pobres” e “excluídos”, para a Universidade é, sob diversas denominações – como
“universidade para todos” ou “universidade dos trabalhadores” – tão simpática a
setores tão comprometidos com a preservação dessa sociedade burguesa e tão
avessos à sua transformação? Por que o discurso da inclusão via Universidade
convive tão bem com o consenso do capital e a perspectiva mercadológica do
ensino superior?
Universidade burguesa?
A
referência à dita “Universidade burguesa” ou “elitista”, muitas vezes com claro
viés demagógico, nega justamente o fato de que se a Universidade é burguesa ela
o é porque está imersa na sociedade capitalista. Fazer da Universidade o bode
expiatório das desigualdades e da lógica de mercado dominantes é deslocar o
foco da verdadeira perspectiva revolucionária. Fazê-la responder por e
supostamente solucionar essas desigualdades é pô-la em risco e ainda justificar
essa ação: afinal, por que defender a Universidade burguesa e elitista? Por
isso, numa leitura influenciada pelo Anarquismo, vemos a desqualificação da
histórica defesa da “universidade pública, gratuita e
de qualidade”, como se esses valores não tivessem significado e, portanto, não
implicassem risco de perdas para a sociedade e os trabalhadores[1].
A
Universidade brasileira é burguesa e elitista! Note-se que nessa lógica
“radical” tanto faz se ela é pública ou privada, ou se ela tem uma larga
tradição de bom ensino e pesquisa ou é um “supermercado de diplomas”. O brado
de repercussão fácil – até pela coincidência com a mídia conservadora quanto às
universidades públicas – esconde que a Universidade
Pública brasileira não só se caracteriza pela excelência do ensino e pela pesquisa
(90% do país), formando sim, profissionais críticos, como foi um espaço de
produção contundente acerca da das contradições de nossa sociedade e de resistência
ao autoritarismo, motivo pelo qual foi alvo de perseguições e restrições
financeiras, e à selvageria neoliberal. Resistindo ao controle pela violência
das cassações e prisões e ao assédio de propostas privatistas e
discriminatórias, como a cisão em universidades, como centros de excelência, e
institutos de ensino superior.
A
Universidade Pública pôde resistir
por três motivos: 1) o paulatino acesso de estudantes oriundos de setores
populares ou trabalhadores, que hoje constituem parte significativa de seu
corpo docente (graças em muito à sua gratuidade e aos concursos públicos), a
despeito das intenções exclusivistas dos mais conservadores; 2) a capacidade
crítica acumulada por essas instituições, reconhecida por parte significativa
da sociedade; 3) em último, mas o mais importante, a construção e preservação da
sua autonomia, com a garantia da liberdade de pesquisa e crítica. Com base em
sua autonomia, sempre ameaçada e diuturnamente defendida, num consenso interno
e de parte importante da sociedade, a Universidade
Pública resistiu à política privatista e ao seu controle por interesses
privados e governamentais, assim como à lógica de mercado na educação.
Universidade popular?
Em
contraposição a isso, o que seria a Universidade
popular? O que é pôr a Universidade “a serviço do povo, produzindo crítica e conhecimento para o desenvolvimento
social, ao invés de priorizar as demandas do mercado”, como propõe o
companheiro de partido e ex-aluno da UFSJ, Sammer Siman, em artigo recente?
Como produzir agentes críticos e não apenas “mão de
obra ‘acrítica’ para o mercado”[2]? Isso
começa com o diagnóstico de que as “Universidades
brasileiras (sobretudo as públicas), [...] são arcaicas na essência e servem,
na grande maioria dos casos, às demandas do mercado”. Chamamos a atenção para o
destaque dado às instituições públicas, prestando, por exclusão, uma estranha
homenagem à modernidade privada... Mas, será isso, “em essência”, real?
Os exemplos do companheiro Sammer são esclarecedores: os
cursos de medicina priorizam a “medicina curativa” ao invés da prevenção, em
sintonia com a indústria farmacêutica; as engenharias formam engenheiros para
produzirem lâminas de barbear mais afiadas[3],
ao invés de especialistas em sanitarismo, a despeito de “26,7% das residências
brasileiras não possuem sequer acesso à rede de esgoto”; já a extensão, que se
dirigiria mais ao povo não é valorizada em recursos
É interessante observar que os professores que o
companheiro Sammer acusa de se aburguesarem e brigarem por funções gratificadas
de direção vêm sendo, sobretudo quando as ocupam, os maiores defensores de
concepções de uma dita Universidade
popular, dos trabalhadores ou “para todos”. Na universidade da “inclusão”,
por cotas, ENEM, Pró-jovem, ensino à distância, PROUNI etc.[4],
e de “mutirões” para a solução de problemas sociais. Tudo isso, claro, convive
muito bem com empreendedorismos rasteiros, cursos pagos, práticas clientelistas
e autoritárias e quaisquer convênios empresariais, muitos deles adornados com o
lema “responsabilidade social”. Tudo ao sabor da velha técnica de amansar
burro: cenoura e chicote. Para os que cumprem o exigido pelo governo, lautas
verbas, prédios, bolsas e dividendos políticos, para os outros a ameaça da
penúria...
Mas, afinal, que pesquisas servem ao povo? Medicina
“curativa” não serve aos setores populares, apenas a preventiva, ou os avanços
da medicina devem ser democratizados por pesados investimentos de saúde
pública? Pesquisa de ponta em materiais (o exemplo da lâmina) não interessa ao
povo, ou essa tecnologia pode retornar na forma de instrumentos mais eficazes e
seguros para a sua vida diária (cirúrgicos, de trabalho etc.)? E é mesmo por
falta de engenheiros que não se resolve o déficit de esgotamento sanitário, ou
será a falta de investimentos? Pesquisa com células-tronco interessa ao povo, e
as de genética avançada, ou classes populares não sofrem acidentes ou doenças
degenerativas? É mesmo preciso escolher entre pesquisar o mal de chagas,
“doença dos pobres”, ou a síndrome de imunodeficiência adquirida (SIDA),
“doença de rico”, como já ouvimos de defensores de uma medicina popular, ou as
pesquisas no campo imunológico podem trazer ganhos para toda a medicina? A
tecnologia agrícola e veterinária – perigosamente identificada com o
agronegócio – não interessa às populações rurais, embaladas num mítico retorno
à aldeia tradicional, ou pode melhorar a vida do pequeno produtor e incrementar
cooperativas? E o que é extensão universitária sem pesquisa, se não práticas
filantrópicas e conservadoras a serviço do oportunismo político?
Universidade autônoma
E quem decide? O governo de plantão? Os movimentos
populares? Stalin tornou quase oficiais as equivocadas teorias do biólogo
russo Lisenko, que considerava a genética uma “ciência burguesa”, com o apoio
de cientistas muito interessados em facilidades oriundas do poder, atrasando em
muito as pesquisas soviéticas nessa área, que logo se mostrou essencial. As
demandas sociais imediatas são boas conselheiras científicas, ou são incapazes
de ir além de propostas superficiais e conservadoras? É papel da Universidade,
ou da ciência e do mundo acadêmico, realizar políticas públicas, ou o de oferecer
subsídios fundamentados (por vezes contraditórios) para que a sociedade e suas
instâncias decisórias façam escolhas?
É
claro que a Universidade na sociedade capitalista é burguesa e se orienta pela
lógica do mercado, é também evidente que na Universidade predominem concepções
individualistas relativas a essa cultura do mercado. No entanto, não será ela a
antecipadora ou a promotora da transformação radical da sociedade. Assim, ela é
um espaço de disputa entre visões de mundo e projetos de sociedade, no qual
cabe aos comunistas e outros comprometidos com a mudança social mais ou menos
profunda pugnarem pela justeza de suas concepções, ampliando o espectro da
pesquisa para além da lógica mercadológica. Nesse sentido, cremos, os alunos e
mestres oriundos e/ou comprometidos com a transformação social devem enfrentar
sem subterfúgios os desafios da qualidade acadêmica, pois, como observa
Gramsci: “Se se quiser criar uma nova camada de intelectuais, chegando às mais
altas especializações, a partir de um grupo social que tradicionalmente não
resolveu as aptidões adequadas, será preciso superar enormes dificuldades”[5].
Dessa
forma é essencial a liberdade e a democracia, que na Universidade envolve o
mérito acadêmico e possibilita o embate lógica e empiricamente consistente.
Além disso, a Universidade precedeu à burguesia e sobreviverá a ela. Se nós
lutamos por uma nova sociedade, a Universidade deverá ser também nela um espaço
livre de reflexão. Nessa perspectiva, o principal patrimônio da Universidade é
a sua autonomia, que não existe se subordinada a governos, empresas privadas ou
mesmo a movimentos sociais.
A defesa da Universidade Pública
Assim,
a simpática palavra de ordem de Universidade
popular pode levar ao abandono a bandeiras como as da defesa do caráter
público e gratuito e da qualidade da Universidade
Pública, tidas como ultrapassadas. Nós comunistas conhecemos bem a tragédia
da condenação das idéias “por decreto”, sem o exame acurado da realidade. A
Universidade sofre o constante risco em sua gratuidade, em seu caráter público
– aliás criticado por defensores da Universidade
popular como “estatal”, numa confusão bem ao gosto de seus inimigos[6] –
e em sua qualidade, quando, por exemplo, ela sofre intervenções em seus
processos de seleção, em exigências de programas duvidosos em ritmo alucinante,
como na educação à distância, ou induções a certos temas de pesquisa em
detrimento de outros.
Ao
invés da ilusão da Universidade popular
devemos manter a defesa da Universidade
Pública em sua autonomia. Pois o que mais o povo tem a lucrar com a
Universidade é a qualidade da reflexão que ela tem a oferecer no curso das
lutas pela transformação radical da sociedade e na nova sociedade futura.
.
[1] Daniel
Caribe. Ensaio para uma Universidade Popular. Cadernos do CEAS, no. 229, 2008.
http://www.ceas.com.br.
[2] Sammer Siman. Universidade
popular: como fazê-la? http://www.rumosdobrasil.org.br/,
16-3-2010.
[3]
Não obstante a justa preocupação do companheiro com a
existência de um prédio da Gillete no seio da Universidade Federal de Campina
Grande (PB), numa perigosa promiscuidade com o grande capital privado.
[4]
“Inclusões” que vêm sendo feitas sem o enfrentamento dos gargalos da educação
básica, ou mesmo para embaçar esse nível de formação como questão política.
[5] Antonio
Gramsci. Cadernos do cárcere – volume 2: Os intelectuais. O princípio
educativo. Jornalismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p. 52.
Gramsci critica a chamada “escola para o povo”, cuja perspectiva pragmática acaba
por restringir “a base da camada governante”, ver p. 50.
[6] Daniel Caribe, op. cit.
Comentários
Ou as Universidades estão acima das classes? Como transformar a sociedade e não transformar as universidades? Como fazer uma universidade popular (pública), enquanto a Revolução não está em curso?
Nós comunistas, defendemos (em síntese) um projeto de poder, que tem como objetivo rupturas. Aprendemos com Lênin (eu aprendi) que temos que trabalharmos na totalidade, ocupar todos os espaços. Se a universidade está fora, as outras instâncias burguesas (comunicação, justiça, etc.) estariam também?
E qual o papel dos institutos técnicos? Querendo ou não, até pelo processo de alienação que vivemos o jovem de classe C que entrar na universidade para ser mão de obra para a produção capitalista. E isso temos que temer?
A universidade deve servir os interesses do povo, mas este não pode ser protagonista desta luta?
Primeiro, não há um domínio nem burguês, muito menos proletário nas universidades. A intelectualidade, da qual se compõem as universidades, se divide em apoio e praticamente incorporação às mais diversas classes, de acordo com suas ideias, ou seja, até a classe extintas ou quase extintas...
As formas de controle burguês sobre as universidades são administrativas, sobretudo duas - o governo por meio do MEC, e a forma burguesa de democracia interna, em que os reitores concentram poderes e são eleitos em eleições diretas...
Qual deve ser o programa comunista para as universidades? Marx defendia a autonomia da educação em relação ao Estado, ou seja, em relação aos governos, e daí o caminho a ser tentado deve ser fazer com que as universidades deixem de ser Estado... O interesse do proletariado é o desenvolvimento máximo da ciência! Por todos os meios o desenvolvimento científico destrói o capitalismo e prepara o mundo novo...
Sobre as políticas petistas, chamadas afirmativas e que o camarada Wlamir chama de identitárias, elas não têm interesse nenhum para o proletariado, mas tão somente o dividem... São irresponsáveis, geram racismo, sacrificam a qualidade da educação e daí de todos os serviços no futuro com a finalidade única de cabalar votos sem realmente resolver os problemas pela raiz...
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