ROLEZINHO, CLASSES SOCIAIS E EMANCIPAÇÃO HUMANA: REFLEXÕES DE UM COMUNISTA VELHO?

Wlamir Silva
Professor e historiador


Não sou frequentador de shopping centers, até por viver no interior. Mas passei com minha esposa algumas horas num deles no Rio de Janeiro, no dia 15 de outubro de 2013. O objetivo era fazer uma refeição num ambiente com ar condicionado e ir ao cinema, passando um tempo antes de enfrentar a cansativa viagem interestadual.

O shopping é no subúrbio do Engenho de Dentro, do qual já fui por muito tempo morador. Área valorizada pelo próprio Norte Shopping, pelo estádio Engenhão e a própria expansão urbana. Certamente não, no entanto, uma das áreas mais nobres da cidade. Sua população é muito variada socialmente.

Não pudemos ir ao cinema, pois era dia do professor e o shopping estava apinhado de gente, em especial jovens, e os cinemas de filas. A massa humana que se movimentava incessantemente refletia, mais que o bairro, a diversidade de toda aquela macrorregião. Saltava os olhos a diversidade de cores, vestimentas, comportamentos e, ao que parece, perfis sociais.

No restaurante, relativamente chic, em dado momento, observamos que, além de nós, todos os clientes eram negros. Negros nos padrões antigos, não os do IBGE, que os consideraria “pretos”. Não percebemos nenhum ruído ou mal-estar no ambiente do shopping, ainda que vários jovens fossem negros e se vestissem, com variações, no padrão funkeiro. Nada surpreendente, era o mesmo que via há duas décadas atrás, quando era vizinho do shopping.

Por tudo isso a batalha narrada nos shoppings paulistas para mim é estranha. Mais ainda pelo desenho “analítico” que a enquadra como o enfrentamento entre uma entidade nomeada de “classe média” e os “excluídos” e/ou trabalhadores.

A demonização da “classe média” – by Marilena Chauí – não me seduz. Amigos paulistas me dizem que eu não entendo a “classe média paulista”, e têm sempre o relato de um comentário escabroso entreouvido... Pode ser. De fato o Rio de Janeiro é mais interpenetrada que São Paulo, com periferias mais marcadas. Talvez por isso não entenda o que ocorre nos shoppings paulistas. Fica a dúvida. Serão paulistas tão essencialmente diversos de cariocas?

Classe média sempre foi um conceito, ou não conceito, complicado. Principalmente por não se relacionar à posição no sistema produtivo. Fortaleceu-se pelo desenvolvimento das técnicas de classificação social pela renda e o consumo, pelas pesquisas e censos. Mesmo outros aspectos de atribuição de classe – poderíamos chamar de visão de mundo –, justamente incluídos para formar estes perfis sociais, são extremamente complexos.

O que se chama de “classe média” é um apanhado muito diverso. Dependendo de como se conte – incluindo a base da classe B e o topo da classe C (vide figura) – chegamos fácil a uns 80% da população. É provável que este seja o contingente de frequentadores de shoppings, desde muito. Portanto, a terrível “classe média” é composta de gente de vários tipos, posições no sistema produtivo e visões de mundo. Quanto ao último item, talvez menos, pois são, como, aliás, quase todos, homogeneizados pela cultura do consumo, midiática e... dos shoppings...

Os participantes dos “rolezinhos” se distinguem da totalidade desta “classe média”? Alguns sim. Parte da “classe média” talvez não se distinga muito deles. Uma coisa é certa, grande parte da tal “classe média” é constituída de algo que podemos classificar de classe trabalhadora. De variadas cores e visões de mundo, guardadas as já citadas homogeneidades. Parte deles tem o mesmo, ou próximo, perfil social dos participantes dos “rolezinhos”. No Rio, isso é visível a olho nu. Outros já observaram que em São Paulo os “rolezinhos” não se deram nos shoppings mais elitizados, mas em áreas, como Itaquera, nas quais este perfil deve ser bem heterogêneo.

A imagem simplória da classe média branca, rica e extremamente preconceituosa é uma ficção sociológica, sua extensão aos shoppings também. Sua comprovação com observações extremas em redes sociais (37 milhões de brasileiros no Facebook) também. A “classe média”, diga-se, é um bom coringa para a mistificação social, serve para mitificar a suposta justiça social alcançada, e aí todos viram classe média, ou para uma “estratificação social” que opõe tolamente “ricos” e “pobres”.

Os “rolezinhos” são ações coletivas articuladas por redes sociais e por meio de uma estética. A estética é o funk, mais especificamente o “funk ostentação”. Esta estética guarda uma visão de mundo que funde o consumismo burguês a uma atitude de ocupação de espaços “negados”.Um elemento desta estética é o elogio simbólico à criminalidade – mesmo que indireta, como observa um antropólogo, ou ameaçadora, diríamos nós.

O funk variou no tempo e é variado, sim. Da mais abjeta conformação social – “o pobre tem o seu lugar” –, à apologia ao crime e à mais recente exaltação ao consumo. Estes elementos, no entanto, sempre lá estiveram. Trata-se de uma cultura conservadora, consumista, preconceituosa (em especial quanto à mulher) e apologética do crime e da violência. Violência em especial voltada para as comunidades na qual vicejam.

Fui professor em escolas municipais no Rio de Janeiro de meados dos anos 1980 ao início dos anos 1990, na zona oeste e no caminho para a baixada fluminense. Vi a ascensão do funk como cultura entre alunos. Já então a estética do funk era eivada de violência e de referências mais ou menos explícitas à criminalidade. Por vezes a relação era real e perigosa, no mais delas era meramente simbólica, mas o suficiente para que os pequenos grupos cool (não é aleatória a expressão estadunidense) praticarem o que hoje chamamos de “bullying”, com atitudes intimidadoras e de gangue. Atrapalharam a vida escolar de muita gente.

É claro que o funk se popularizou e é aceito por amplos setores sociais, fato que permitiu o “enriquecimento” de funkeiros da ostentação. Por meio da mídia – vejam o programa “Esquenta”, na Rede Globo. Um dos motivos é a sua compatibilidade com a cultura elitista e violenta, que o levou aos carros ribombantes dos “playboys” de diversa extração social. Outro é a sua estética primária e grotesca, tão ao gosto de nossa mídia. Ele é, portanto, parte da cultura de boa parte dos frequentadores dos shoppings, que dificilmente o estranhariam...

Uma curiosidade sobre os “rolezinhos” é o de que há filmagens dos momentos de sua repressão, e nenhuma do momento de sua realização, fato estranho no mundo dos celulares que filmam... Nenhum registro da entrada no shopping de Guarulhos dos “rolezeiros” cantando “Eita porra, que cheiro de maconha”, funk do MC Daleste. Não há registro de outros refrões do assassinado funkeiro ostentação, talvez “Oi joga joga o fuzil pro alto, descarrega as ponto 30”, do funk “Violentamente!”. Do mesmo Daleste... Não há cenas da forma e atitude de tal entrada ou de outras... (1)

Não há também depoimentos de frequentadores dos shoppings que se incomodaram com tais práticas. Apenas depoimentos penalizados de jornalistas e algumas de participantes do “rolezinho”, sempre no momento da repressão, do controle. Talvez a “classe média branca e preconceituosa” não mereça mesmo ser ouvida, talvez outros atores sociais denunciassem incômodas contradições – ou relativização delas? – no mundo dos shoppings. Talvez os verdadeiros ricos tenham outras formas de lazer que não os palácios do consumo da “classe média”...

Vivemos uma profunda despolitização da sociedade. Um sintoma dela é a simplificação das questões, no “ou isto ou aquilo”, nas falsas oposições absolutas. Uma característica dela é o exagero identitário, pelo qual grupos e indivíduos são classificados prévia e rigidamente. A despolitização serve a manipulações de governo e ao esvaziamento da reflexão política, que é, necessariamente, complexa e não redutível a simbolismos vazios. Submeter-se a estas simplificações é alimentar esta despolitização.

Exaltar os “rolezinhos” como “insurgentes” e identificar seus participantes como “os” trabalhadores é uma mitificação. O funk ostentação é uma manifestação estética conservadora, preconceituosa e violenta. É claro que há trabalhadores entre seus manifestantes. Assim como os há, e muito mais, entre os frequentadores dos shoppings. O que os une é a participação na sociedade de consumo representada pelos shoppings, o que os difere é a estética funkeira em seu estado puro, sem as aparas midiáticas.

As inaceitáveis revistas de seguranças classificando e excluindo indivíduos não justificam a heroificação dos “rolezeiros”. Não há uma “classe média” roubando aos “rolezeiros”, há contradições sociais que o fazem, inclusive com muitos dos habituais frequentadores dos shoppings. Estes limites exigem a crítica a esta sociedade balizada exclusivamente pelo mercado. Não é a “classe média” que faz isso, mas as grandes corporações capitalistas internacionalizadas, mas essas são os deuses adorados pelo funk ostentação e sua estética conservadora, representados nas marcas e símbolos de felicidade e onipotência.

(1) http://letras.mus.br/mc-daleste/1967360/. É necessário observar que Daleste foi assassinado por pessoas de seu meio, por “inveja”, dizem seus amigos...




Comentários

"Eu estou acompanhando os rolezinhos e sinto certo prazer em ver aquela apropriação. Mas entre apropriação e resistência há uma abismo significativo. Adorar os símbolos de poder – no caso, as marcas – dificilmente remete à ideia de resistência que tanta gente procura encontrar nesse ato. O tema é complexo não apenas porque desvela a segregação de classe brasileira, mas porque descortina a tensão da desigualdade entre países desenvolvidos e em desenvolvimento, entre o Norte e o Sul. E enquanto esses símbolos globais forem venerados entre os mais fracos, a liberdade nunca será plena e a pior das dependências será eterna: a ideológica." - Rosana Pinheiro Machado
A situação que levou a que se recosesse a decisões judiciais para que se permitisse a abordagem e a restrição da circulação de jovens da periferia nas dependências dos shoppings centers tornou mais visível o processo de urbanização que marginalizou a periferia, violou o direito à cidade pela falta de políticas de planejamento e potencializou a discriminação e o preconceito de uma sociedade estratificada e desigual.

O mercado imobiliário empurrou as pessoas para áreas cada vez mais distantes dos centros urbanos, deixando-os, na maioria das vezes, sem direito a serviços de cidadania e a espaços públicos livres, como parques e áreas verdes, ou seja, territórios de domínio público. Logo, com a ausência do Estado, a segregação social dessa população acontece em outros espaços, com características privada e mercadológica.

É um fenômeno que envolve a privatização dos direitos (moradia, saúde, lazer) e a supervalorização do espaço privado como resultado da ausência de planejamento urbano por parte do Poder Público. É a contradição, já que os investimentos vão para áreas onde há estrutura e melhores condições urbanas.

Esses locais têm sido primordialmente os condomínios privados ou os shoppings centers. Espaços privados de uso coletivo, notadamente excludentes, garantido por meio de grades, muros e controle absoluto de quem pode nele circular. Nesses espaços privados o cidadão não deixa de ser um sujeito de direito, mas se torna um consumidor em potencial, relativizando suas garantias.

Assim, a cidadania está baseada na diferenciação e estratificação social, onde os pobres não podem circular livremente em alguns locais. A qualidade da vida urbana virou uma mercadoria. Há uma afirmação de liberdade de escolha de serviços, lazer e cultura – desde que se tenha dinheiro para pagar.

É preciso defender a importância dos espaços públicos livres como um local de realização do direito à cidade. O direito à cidade significa o direito de criar cidades que satisfaçam as necessidades humanas. E todos nós devemos ter o direito de construir os diferentes tipos de cidades que nós queremos que existam. O direito à cidade não é simplesmente o direito ao que já existe na cidade, mas o direito de transformar a cidade em algo diferente. Em nossa sociedade, as cidades foram regidas pelo capital, mais que pelas pessoas.

A cidade constitui um grande patrimônio construído histórica e socialmente, mas sua apropriação é desigual, pois ela tem um preço devido a seus atributos. Isso tem a ver também com a disputa pelos fundos públicos e sua distribuição (localização) no espaço.

Por fim, precisamos de menos shoppings centers e consumo, e mais espaços públicos.

Então, é preciso inverter a lógica e criar mais espaços públicos. A abundância pública - representada por grandes parques urbanos, museus gratuitos, bibliotecas e inúmeras possibilidades de interação humana - é um meio alternativa para uma vida rica. Além disso, a prosperidade pública deve ser equilibrada em todas as dimensões para impedir que a riqueza cultural e o espaço verde se acumulem em centros inacessíveis e que sejam desfrutados apenaspor turistas e pela alta classe, como acontece atualmente.