CONSTITUINTE É A RESPOSTA ÀS MANIFESTAÇÕES POPULARES?


A fragorosa derrota da PEC 37, a aprovação de 75 % das verbas do Pré-Sal para a educação e a encampação da proposta do passe livre por Renan Calheiros provam que as manifestações têm o poder de constranger e obrigar o Congresso. Mostra também que isso não precisa de uma Constituinte restrita para acontecer. A questão é se isso continua, quanto continua e como continua.

A bandeira da reforma política surgiu nas manifestações. Creio, de fato, que foi a principal questão em foco: a qualidade de nossa representação política (“ninguém nos representa”). As mazelas estruturais – transporte, saúde, educação etc. – são reflexo disso. Mas não é claro, ou mesmo surgiu, ou foi recorrente, nenhum aspecto específico do que seria a reforma política.

Voto distrital, listas fechadas, financiamento público de campanha e cláusula de barreira (esta uma arma das grandes máquinas partidárias contra os partidos de esquerda), temas comuns, não foram motes das manifestações. O que até faz sentido, pois quase todas elas remetem ao funcionamento partidário e as manifestações se demonstraram em boa parte instintivamente anti-partidárias.

Daí, e mais importante, é que outros, que não costumam ser elencados pela classe política, também não vieram à tona ou se destacaram: limitação de mandatos (embora isso tenha sido uma preocupação dos fundadores do sistema representativo), diminuição de salários e estrutura de gabinete (verbas extras, assessores, equipamento etc.), a fidelidade a programas partidários e o fortalecimento dos congressos partidários, ou o fim das emendas individuais.

A proposta de uma constituinte em quatro meses é aparentemente para atender ao clamor das ruas. Mas as indefinições sobre que reforma fazer e sua relação com as características das manifestações desnudam as reais possibilidades de transformação e o caráter da proposta.  

 Lembremos que a presidente da República e os seus antecessores conviveram muito bem com a forma tomada pela política nacional. Que a reforma política nunca foi tema ou proposta prioritária mesmo em momentos de grande popularidade, mais adequados para tal. De fato, a reforma política surge como tábua de salvação, reação de bicho acuado, não como proposta de estadista.

Até porque o partido da presidente vem se transmutando exatamente no sentido da política agora estigmatizada, seguindo e se confundindo com a base aliada e até com adversários. A política clientelista, o uso político de verbas públicas, a promiscuidade com o privado, a multiplicação de ministérios – e sua negociação – e de cargos de confiança e demais vícios são compartilhados e mesmo aprofundados, até pelo fato de não haver oposição a nada disto.

A presidente, seu partido e seus aliados não tem autoridade para conduzir este processo. O movimento das ruas não tem meio ou clareza para fazê-lo ou fiscalizá-lo. Não em quatro meses... As manifestações são erupções relativamente espontâneas, mas refletem décadas, séculos, de insatisfações acumuladas. Sua solução não poderá ser pontual, terá de adquirir consistência de formulação institucional. Daí as incertezas presentes.

Um plebiscito para decidir se deve haver uma reforma política? Seria assinar em branco o que seria produzido? Ou haveria um referendo posterior? Constituinte restrita com este Congresso, para aproveitar o clamor popular, mas também deixando ao lobo o cuidado de ovelhas? Constituinte eleita exclusivamente, para contornar o Legislativo viciado, mas ao sabor de critérios eleitorais ainda suscetíveis do poder econômico e midiático, ainda mais que as manifestações podem ter arrefecido seu poder de pressão?

E uma Constituinte instalada, pode ser restrita ou é soberana? Se for soberana pode alterar direitos? Não esqueçamos que o partido do governo odeia a legislação trabalhista e gesta silenciosamente um Acordo Coletivo Especial que retira direitos dos trabalhadores, no que, aliás, concorda com os velhos conservadores e para o que teria o seu apoio.

Não somos legalistas, estruturas institucionais podem ser rompidas – não partilhamos do motivo pelo qual a presidente recuou. Se não, estaríamos até hoje lambendo os sapatos de salto alto dos reis. Mas isto exige organização e programa, mesmo que para mudanças restritas. Não pratiquemos a demagogia de atribuir ao movimento espontâneo das ruas este condão, deixemos a hipocrisia para os que, dos palácios, ouvem a “voz das ruas” quando lhes é conveniente ou inevitável.

As mudanças profundas exigirão ainda mais – o acúmulo de elementos de uma nova visão de mundo – e, no caminho, devemos tomar cuidado com as propostas de animal acuado de quem até bem pouco achava que tudo ia muito bem, inclusive transporte, saúde, educação etc. Cuja situação caótica espelha também a adesão à velha política.

Nem mesmo a exigência de entrada em pauta da reforma política de forma imediata – com impacto semelhante ao da rejeição da PEC 37 – pois simplesmente o povo nas ruas não tem uma proposta minimamente clara do que quer. Isso demandará discussões e definições. Este movimento tem dinâmica para tanto? Ele interagirá com lideranças, entidades e especialistas para isso? E qual será o formato disso? Corremos o risco de coadjuvar uma farsa.

Cabe tentar perceber o que estas manifestações representam e o que elas trazem de novo às perspectivas de emancipação dos trabalhadores e da humanidade, buscar o diálogo com suas lideranças e colaborar com a sua organização. Buscando pontos comuns e apontando para uma perspectiva anticapitalista e uma alternativa socialista e revolucionária. Não há atalhos e não é saudável esperar uma impossível solução oriunda apenas de movimentos difusos ou, pior, de sua manipulação por forças políticas cada dia mais conservadoras.

Wlamir Silva
Militante do Partido Cominista Brasileiro - Célula de São João del-Rei - MG
Professor de História da Universidade Federal de São João del-Rei

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